EXPRESSO: Opinião

29-11-2002
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Apagão e ousadia

Vitalino Canas*

NUMA entrevista ao «Independente», os jornalistas perguntaram a Francisco Louçã (FL) se o PSR e a UDP ainda existem. «Existem», responde secamente o entrevistado. Os jornalistas insistem: «mas quase sem voz»... «Sim, sem intervenção pública», responde FL. Terão notado os jornalistas um suspiro de secreto alívio?

As cinco palavras e a pressa de FL são sintomáticas. O Bloco de Esquerda (BE) assemelha-se àqueles filhos que «subiram na vida» e preferem não ser vistos com os pais porque têm mau aspecto, causam incomodidade em mesas requintadas e não sabem vestir-se para as festas «xiques» do Verão. O BE tem hoje acesso aos salões elegantes da sociedade política, frequenta as melhores lojas das ideologias de esquerda, informa-se nos bons jornais de culto, porventura deseja ardentemente ser convidado para o clube restrito dos partidos que têm acesso ao Governo. Como imaginar que o BE admita «ser visto» com quem defende a revolução proletária universal, a ditadura do proletariado, a instauração revolucionária do comunismo e a erradicação violenta do capitalismo? O BE prefere que nos esqueçamos da UDP e do PSR.

O apagão dos seus progenitores ideológicos, que FL mais uma vez faz, implicitamente, no artigo que escreveu no último EXPRESSO, é a moeda de troca que o BE aceita pagar para se insinuar no debate da esquerda democrática. É bem-vindo nesse debate.

Há 3 anos não era claro o que o BE queria ser. Hoje começamos a saber. Condição essencial para definir o seu quadro programático, foi a percepção do nicho eleitoral que estava à sua disposição, bem como o registo em que a sua actuação seria mais convincente. Não sendo uma organização da classe operária, mas sim das classes médias assalariadas e de uma certa elite cultural urbana, não possuindo pontes relevantes para o movimento sindical, recebendo maior audiência junto de uma plateia eleitoral preocupada com a qualidade, o BE escolheu um discurso moderno de esquerda reformista, abandonando (definitivamente?) o jargão marxista-leninista (uns) ou trotsquista (outros).

Esse discurso desenhado para uma classe média urbana com preocupações sociais é uma mescla. No campo das causas sociais, o BE adere àquilo que FL considera dois grandes objectivos da esquerda: o pleno emprego e a defesa do Estado Providência. No campo político, propõe mais Europa, a democratização radical do sistema político e soluções radicais liberais em algumas áreas. Além disso, confisca causas lançadas por movimentos pós-materialistas a partir dos anos 60 e 70, nomeadamente as do ambiente, do ordenamento e da protecção dos consumidores. No campo económico, embora aceite a economia de mercado, resiste à nova ortodoxia neoliberal, confirma a capitulação do keinesianismo, mas não escolhe nenhum quadro teórico que substitua o de Keynes. No campo das funções de soberania, não esconde hostilidade para com a presença na NATO e para com as despesas militares, e denota incomodidade em lidar com temas da segurança. A tudo isto junta-se ainda um discurso antiglobalização e de denúncia das desigualdades.

Qualquer estudioso do socialismo democrático não hesitará em identificar estas linhas programáticas com as da esquerda dos partidos socialistas europeus. Talvez estejam pouco presentes no PS português. O BE viu uma boa oportunidade e não a quer desperdiçar. Mas isso tem um significado: o BE não só não quer «ser visto» com os seus progenitores como já escolheu uma nova família...

A questão que se coloca é a seguinte: esta mescla que a esquerda do socialismo democrático tem subscrito por essa Europa fora e que o BE quer representar em Portugal é melhor do que a mescla ideológica que a corrente maioritária da social-democracia tem adoptado desde os anos 60 em sucessivas vagas de Governo?

Desde os anos 60 os socialistas democráticos viram as condições essenciais da sua actuação dramaticamente alteradas. Os partidos socialistas passaram a ser comandados pelas classes médias assalariadas. As suas ligações aos sindicatos atenuaram-se. O seu discurso passou a dirigir-se a um leque vasto do eleitorado, tendo-se complexizado, em alguns casos de modo contraditório: tem procurado compatibilizar os valores tradicionais da luta pela igualdade e a defesa do Estado Social, com o desenvolvimento económico e a ortodoxia financeira do défice zero. A isto acrescem as novas preocupações antimaterialistas (a ecologia, sobretudo) e um liberalismo político radical em certas áreas. Keynes ficou pelo caminho.

Há, naturalmente, «nuances». As mais visíveis distinguem as experiências de Blair e de Jospin. Mas não apagam o essencial da contradição programática e de «causas».

Hoje propaga-se a suspeita de que as incoerências internas deste programa foram responsáveis pelas crises do socialismo democrático das décadas de 70 e 80 e são mais uma vez responsáveis pelas crises de confiança e de identidade actuais. Para esta suspeita concorrem drasticamente três interrogações: primeiro, porque não contribuíram as experiências governativas socialistas para a diminuição das desigualdades sociais? Segundo, fizeram os socialistas tudo o que podiam fazer para criar uma alternativa à globalização comandada pelos gurus do neoliberalismo? Terceiro, transigiram os socialistas demasiado facilmente com um ideia de Europa obcecada com os critérios de convergência de Maastricht?

Estas três questões são incontornáveis. Só uma resposta clara permitirá um projecto coerente de exercício do poder. FL oferece um programa radical de superação daquelas dúvidas. No PS o tema tem sido discutido e têm surgido contributos menos radicais, como o de Mário Soares no excelente artigo no EXPRESSO. Esses contributos impressionam mesmo aqueles que, como eu, perfilham uma perspectiva moderada da evolução programática do socialismo democrático.

Independentemente do contributo do BE para o resultado final desse debate, há um aspecto com amplo significado político: o BE parece aceitar centrar as suas posições políticas num espaço que tem muito de comum com o do socialismo democrático e pouco que ver com o radicalismo revolucionário esquerdista dos seus genes. Com isso o BE terá já cumprido parte importante do trajecto de aproximação a uma solução governativa de esquerda.

Mas há aspectos onde o BE revela dificuldades doutrinárias e de prática política que nos separam. O primeiro é de natureza conceptual e transparece inequivocamente na prosa de FL quando identifica liberalismo com conservadorismo. Essa identificação é errónea. Liberalismo não é o mesmo que conservadorismo. O liberalismo político, económico e cultural foi a base das revoluções liberais. O liberalismo político e cultural, particularmente na sua vertente radical, continua a ser anticonservador no nosso tempo. Mesmo o chamado neoliberalismo económico, embora pernicioso, pode ser, em certos contextos, anticonservador.

O segundo tem que ver com a dificuldade com que lida com os temas da segurança e da soberania. Uma organização que aspire com realismo chegar ao poder não pode ignorar olimpicamente a necessidade de uma filosofia de autoridade democrática do Estado e de exercício atento das funções de soberania.

A terceira tem que ver com um preconceito. Resumir a apreciação que se faz do Governo do PS com a seca acusação de que se converteu ao conservadorismo é continuar a assumir um tique preconceituoso de oposição a um adversário que é necessário desacreditar. Tal como o PS tem de aprofundar a reflexão sobre os seus erros no Governo, também ao BE falta ainda a frieza de análise suficiente para reconhecer os grandes progressos registados nos últimos anos em numerosas áreas sob a égide do Governo do PS. Quando um e outro realizarem o que falta desses dois caminhos, o encontro será mais fácil.

* Deputado do PS

Apagão e ousadia

Vitalino Canas*

NUMA entrevista ao «Independente», os jornalistas perguntaram a Francisco Louçã (FL) se o PSR e a UDP ainda existem. «Existem», responde secamente o entrevistado. Os jornalistas insistem: «mas quase sem voz»... «Sim, sem intervenção pública», responde FL. Terão notado os jornalistas um suspiro de secreto alívio?

As cinco palavras e a pressa de FL são sintomáticas. O Bloco de Esquerda (BE) assemelha-se àqueles filhos que «subiram na vida» e preferem não ser vistos com os pais porque têm mau aspecto, causam incomodidade em mesas requintadas e não sabem vestir-se para as festas «xiques» do Verão. O BE tem hoje acesso aos salões elegantes da sociedade política, frequenta as melhores lojas das ideologias de esquerda, informa-se nos bons jornais de culto, porventura deseja ardentemente ser convidado para o clube restrito dos partidos que têm acesso ao Governo. Como imaginar que o BE admita «ser visto» com quem defende a revolução proletária universal, a ditadura do proletariado, a instauração revolucionária do comunismo e a erradicação violenta do capitalismo? O BE prefere que nos esqueçamos da UDP e do PSR.

O apagão dos seus progenitores ideológicos, que FL mais uma vez faz, implicitamente, no artigo que escreveu no último EXPRESSO, é a moeda de troca que o BE aceita pagar para se insinuar no debate da esquerda democrática. É bem-vindo nesse debate.

Há 3 anos não era claro o que o BE queria ser. Hoje começamos a saber. Condição essencial para definir o seu quadro programático, foi a percepção do nicho eleitoral que estava à sua disposição, bem como o registo em que a sua actuação seria mais convincente. Não sendo uma organização da classe operária, mas sim das classes médias assalariadas e de uma certa elite cultural urbana, não possuindo pontes relevantes para o movimento sindical, recebendo maior audiência junto de uma plateia eleitoral preocupada com a qualidade, o BE escolheu um discurso moderno de esquerda reformista, abandonando (definitivamente?) o jargão marxista-leninista (uns) ou trotsquista (outros).

Esse discurso desenhado para uma classe média urbana com preocupações sociais é uma mescla. No campo das causas sociais, o BE adere àquilo que FL considera dois grandes objectivos da esquerda: o pleno emprego e a defesa do Estado Providência. No campo político, propõe mais Europa, a democratização radical do sistema político e soluções radicais liberais em algumas áreas. Além disso, confisca causas lançadas por movimentos pós-materialistas a partir dos anos 60 e 70, nomeadamente as do ambiente, do ordenamento e da protecção dos consumidores. No campo económico, embora aceite a economia de mercado, resiste à nova ortodoxia neoliberal, confirma a capitulação do keinesianismo, mas não escolhe nenhum quadro teórico que substitua o de Keynes. No campo das funções de soberania, não esconde hostilidade para com a presença na NATO e para com as despesas militares, e denota incomodidade em lidar com temas da segurança. A tudo isto junta-se ainda um discurso antiglobalização e de denúncia das desigualdades.

Qualquer estudioso do socialismo democrático não hesitará em identificar estas linhas programáticas com as da esquerda dos partidos socialistas europeus. Talvez estejam pouco presentes no PS português. O BE viu uma boa oportunidade e não a quer desperdiçar. Mas isso tem um significado: o BE não só não quer «ser visto» com os seus progenitores como já escolheu uma nova família...

A questão que se coloca é a seguinte: esta mescla que a esquerda do socialismo democrático tem subscrito por essa Europa fora e que o BE quer representar em Portugal é melhor do que a mescla ideológica que a corrente maioritária da social-democracia tem adoptado desde os anos 60 em sucessivas vagas de Governo?

Desde os anos 60 os socialistas democráticos viram as condições essenciais da sua actuação dramaticamente alteradas. Os partidos socialistas passaram a ser comandados pelas classes médias assalariadas. As suas ligações aos sindicatos atenuaram-se. O seu discurso passou a dirigir-se a um leque vasto do eleitorado, tendo-se complexizado, em alguns casos de modo contraditório: tem procurado compatibilizar os valores tradicionais da luta pela igualdade e a defesa do Estado Social, com o desenvolvimento económico e a ortodoxia financeira do défice zero. A isto acrescem as novas preocupações antimaterialistas (a ecologia, sobretudo) e um liberalismo político radical em certas áreas. Keynes ficou pelo caminho.

Há, naturalmente, «nuances». As mais visíveis distinguem as experiências de Blair e de Jospin. Mas não apagam o essencial da contradição programática e de «causas».

Hoje propaga-se a suspeita de que as incoerências internas deste programa foram responsáveis pelas crises do socialismo democrático das décadas de 70 e 80 e são mais uma vez responsáveis pelas crises de confiança e de identidade actuais. Para esta suspeita concorrem drasticamente três interrogações: primeiro, porque não contribuíram as experiências governativas socialistas para a diminuição das desigualdades sociais? Segundo, fizeram os socialistas tudo o que podiam fazer para criar uma alternativa à globalização comandada pelos gurus do neoliberalismo? Terceiro, transigiram os socialistas demasiado facilmente com um ideia de Europa obcecada com os critérios de convergência de Maastricht?

Estas três questões são incontornáveis. Só uma resposta clara permitirá um projecto coerente de exercício do poder. FL oferece um programa radical de superação daquelas dúvidas. No PS o tema tem sido discutido e têm surgido contributos menos radicais, como o de Mário Soares no excelente artigo no EXPRESSO. Esses contributos impressionam mesmo aqueles que, como eu, perfilham uma perspectiva moderada da evolução programática do socialismo democrático.

Independentemente do contributo do BE para o resultado final desse debate, há um aspecto com amplo significado político: o BE parece aceitar centrar as suas posições políticas num espaço que tem muito de comum com o do socialismo democrático e pouco que ver com o radicalismo revolucionário esquerdista dos seus genes. Com isso o BE terá já cumprido parte importante do trajecto de aproximação a uma solução governativa de esquerda.

Mas há aspectos onde o BE revela dificuldades doutrinárias e de prática política que nos separam. O primeiro é de natureza conceptual e transparece inequivocamente na prosa de FL quando identifica liberalismo com conservadorismo. Essa identificação é errónea. Liberalismo não é o mesmo que conservadorismo. O liberalismo político, económico e cultural foi a base das revoluções liberais. O liberalismo político e cultural, particularmente na sua vertente radical, continua a ser anticonservador no nosso tempo. Mesmo o chamado neoliberalismo económico, embora pernicioso, pode ser, em certos contextos, anticonservador.

O segundo tem que ver com a dificuldade com que lida com os temas da segurança e da soberania. Uma organização que aspire com realismo chegar ao poder não pode ignorar olimpicamente a necessidade de uma filosofia de autoridade democrática do Estado e de exercício atento das funções de soberania.

A terceira tem que ver com um preconceito. Resumir a apreciação que se faz do Governo do PS com a seca acusação de que se converteu ao conservadorismo é continuar a assumir um tique preconceituoso de oposição a um adversário que é necessário desacreditar. Tal como o PS tem de aprofundar a reflexão sobre os seus erros no Governo, também ao BE falta ainda a frieza de análise suficiente para reconhecer os grandes progressos registados nos últimos anos em numerosas áreas sob a égide do Governo do PS. Quando um e outro realizarem o que falta desses dois caminhos, o encontro será mais fácil.

* Deputado do PS

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