O Fado do Público

28-01-2005
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"Fados e Baladas de Coimbra" com o Público Uma selecção de fados e baladas de Coimbra e o sétimo capítulo de "Para uma História do Fado" de Rui Vieira Nery compõem mais um volume da colecção "O Fado do Público". Um livro com CD, a não perder. Amanhã nas bancas. Já se sabe da Severa - que se foi tornando em mito nos anos que se seguiram ao seu passamento - mas afinal quem foram os outros fadistas pioneiros, logo nas décadas de 1840, 1850 e 1860? Pinto de Carvalho e Alfredo Pimentel, autores, respectivamente, de "História do Fado" e "A Triste Canção do Sul", publicadas logo no início do século XX, dão uma ajuda preciosa nesse processo de recenseamento que também toma conta de parte do sétimo capítulo de "Para uma História do Fado", o estudo de Rui Vieira Nery que vem sendo publicado na colecção "O Fado do Público". A Severa enquanto mito encontra justificação até no facto de as outras fadistas conhecidas do seu tempo e dos anos seguintes serem também suas companheiras, não só no ofício do fado mas também no da prostituição. Partilham igualmente uma vida repleta de episódios picarescos e a tragédia de todas terem morrido precocemente, ainda que pouco mais se saiba da sua história, para lá do aplauso com que, nesse tempo, foi brindada a sua arte de fadistas. Carlota Scarniccia, ou a Escarniche, era de origem italiana, nascida no seio de uma família respeitável e até tocava piano. E foi a própria família, de acordo com a moralidade da época, quem repeliu publicamente a sua dedicação ao fado e à prostituição, mandando inclusivamente publicar num jornal, em 1847, que o uso que fazia do apelido era indevido. Outras prostitutas com talento fadista eram a Joaquina dos Cordões, a Chicória, a Borboleta (ou Bebiana Vieira de Castro, que se dizia irmã de um deputado). Também proeminente no seu tempo era a Custódia que compôs e cantou o "Fado da Custódia", passado à guitarra pelo seu habitual acompanhante, o Paixão. Do seu reportório sabe-se que ainda faziam parte o "Fado Persiganga" e o "Fado Anadia", um dos poucos que sobreviveu até aos nossos dias, interpretado notavelmente por Maria Teresa de Noronha, nos anos 50 do século XX. Ainda de 1860, há a destacar a Cesária, a primeira não prostituta a salientar-se no fado. Engomadeira de profissão, em Alcântara, tornou-se uma quase estrela naquele tempo, só batida pela Severa na memória dos admiradores do fado. Ser-lhe-ia dedicado o "Fado da Cesária". Quanto aos homens, os primeiros cantadores são José Norberto (o Saloio de Campolide), o Sales Patuscão (moço de forcados do Conde de Vimioso e presumivelmente autor do "Fado do Vimioso"), o Sousa do Casacão e o já citado Paixão, sabendo-se que estes dois últimos tanto cantavam como tocavam a guitarra portuguesa. Referência ainda para Pitalcante, que alegadamente frequentou o Conservatório, façanha então inédita para qualquer outro fadista. Outro dos pioneiros é António Maria Eusébio, mais conhecido por o Calafate, de Setúbal, muito popular devido à sua arte repentista. Nasceu em 1820 e viria a falecer 91 anos mais tarde, já sob a protecção de figuras da literatura portuguesa como Guerra Junqueiro. Um certo erotismo cru e infantil eram a marca da sua abundante produção poética. Muitos mais são citados por Tinop e Pimentel, todos eles partilhando a condição marginal ou proletária, o que é suficiente para estabelecer o tecido social em que se cultivava o fado nos bairros populares de Lisboa. No seu meio, são conhecidos por alcunhas, pela profissão que levavam ou até pela cor da pele. Nessas listagens encontram-se ainda o Epifânio Mulato, o Preto da Tia Leocádia ou a Preta Cartuxa, o que dá conta da forte presença africana nestes bairros de Lisboa, sublinhando a sua importância no fado tal como ele existia na Lisboa de meados de oitocentos. Ao contrário do que acontece hoje, estes fadistas não são profissionais, pelo menos segundo a conotação que actualmente é dada ao termo, pois não praticam o fado senão por lazer, entretenimento e por razões de convívio. Ou seja, o fado funcionava para cada um destes personagens como uma forma identitária - individual ou colectiva - e nunca como um modo de vida. Ainda no sétimo capítulo de "Para uma História do Fado", Vieira Nery debruça-se sobre os seus instrumentos predilectos, analisando a forma como o cravo e o pianoforte foram sendo substituídos, ainda nos salões, ainda no tempo do lundum e das modinhas, por instrumentos como a viola e a hoje chamada guitarra portuguesa, introduzida em Portugal através da comunidade inglesa sediada no Porto. A derivação social do fado desde a marginália e a classe proletária até aos intelectuais, boémios e jornalistas, também é tratada neste capítulo, realçando a forma como chegou (regressou?) aos salões da nobreza e aos teatros de revista frequentados pela classe média. Um alargamento da sua base social que mereceu críticas de alguns dos seus cultores, já então agastados com o seu desvirtuamento. O sétimo número da colecção "O Fado do Público" apresenta ainda uma colectânea de fados, canções e baladas de Coimbra cuja selecção é da responsabilidade de José Anjos de Carvalho. Entre os temas escolhidos contam-se "Sonhar contigo oh Coimbra" de Luiz Goes, "Saudades de Coimbra" de Edmundo Bettencourt, "Quando os sino dobram" de Augusto Camacho, "Fado da ansiedade" de António Menano, "São tão lindos os teus olhos" de Fernando Rolim, "Fado Hilário" de Alexandre Herculano, "Canção das lágrimas" de Fernando Machado Soares, "Balada da torre d'Anto" de Luiz Goes, "Coro dos caídos" de José Afonso, "Solitário" de António Bernardino, "Vento não batas à porta" de Fernando Rolim e "Tempo que não passa" de José Mesquita. Esta incursão pelo fado de Coimbra vem acompanhada, além de mais um capítulo de "Para uma História do Fado", de textos de António de Almeida Santos e ilustrações de Fernando Guerreiro.

"Fados e Baladas de Coimbra" com o Público Uma selecção de fados e baladas de Coimbra e o sétimo capítulo de "Para uma História do Fado" de Rui Vieira Nery compõem mais um volume da colecção "O Fado do Público". Um livro com CD, a não perder. Amanhã nas bancas. Já se sabe da Severa - que se foi tornando em mito nos anos que se seguiram ao seu passamento - mas afinal quem foram os outros fadistas pioneiros, logo nas décadas de 1840, 1850 e 1860? Pinto de Carvalho e Alfredo Pimentel, autores, respectivamente, de "História do Fado" e "A Triste Canção do Sul", publicadas logo no início do século XX, dão uma ajuda preciosa nesse processo de recenseamento que também toma conta de parte do sétimo capítulo de "Para uma História do Fado", o estudo de Rui Vieira Nery que vem sendo publicado na colecção "O Fado do Público". A Severa enquanto mito encontra justificação até no facto de as outras fadistas conhecidas do seu tempo e dos anos seguintes serem também suas companheiras, não só no ofício do fado mas também no da prostituição. Partilham igualmente uma vida repleta de episódios picarescos e a tragédia de todas terem morrido precocemente, ainda que pouco mais se saiba da sua história, para lá do aplauso com que, nesse tempo, foi brindada a sua arte de fadistas. Carlota Scarniccia, ou a Escarniche, era de origem italiana, nascida no seio de uma família respeitável e até tocava piano. E foi a própria família, de acordo com a moralidade da época, quem repeliu publicamente a sua dedicação ao fado e à prostituição, mandando inclusivamente publicar num jornal, em 1847, que o uso que fazia do apelido era indevido. Outras prostitutas com talento fadista eram a Joaquina dos Cordões, a Chicória, a Borboleta (ou Bebiana Vieira de Castro, que se dizia irmã de um deputado). Também proeminente no seu tempo era a Custódia que compôs e cantou o "Fado da Custódia", passado à guitarra pelo seu habitual acompanhante, o Paixão. Do seu reportório sabe-se que ainda faziam parte o "Fado Persiganga" e o "Fado Anadia", um dos poucos que sobreviveu até aos nossos dias, interpretado notavelmente por Maria Teresa de Noronha, nos anos 50 do século XX. Ainda de 1860, há a destacar a Cesária, a primeira não prostituta a salientar-se no fado. Engomadeira de profissão, em Alcântara, tornou-se uma quase estrela naquele tempo, só batida pela Severa na memória dos admiradores do fado. Ser-lhe-ia dedicado o "Fado da Cesária". Quanto aos homens, os primeiros cantadores são José Norberto (o Saloio de Campolide), o Sales Patuscão (moço de forcados do Conde de Vimioso e presumivelmente autor do "Fado do Vimioso"), o Sousa do Casacão e o já citado Paixão, sabendo-se que estes dois últimos tanto cantavam como tocavam a guitarra portuguesa. Referência ainda para Pitalcante, que alegadamente frequentou o Conservatório, façanha então inédita para qualquer outro fadista. Outro dos pioneiros é António Maria Eusébio, mais conhecido por o Calafate, de Setúbal, muito popular devido à sua arte repentista. Nasceu em 1820 e viria a falecer 91 anos mais tarde, já sob a protecção de figuras da literatura portuguesa como Guerra Junqueiro. Um certo erotismo cru e infantil eram a marca da sua abundante produção poética. Muitos mais são citados por Tinop e Pimentel, todos eles partilhando a condição marginal ou proletária, o que é suficiente para estabelecer o tecido social em que se cultivava o fado nos bairros populares de Lisboa. No seu meio, são conhecidos por alcunhas, pela profissão que levavam ou até pela cor da pele. Nessas listagens encontram-se ainda o Epifânio Mulato, o Preto da Tia Leocádia ou a Preta Cartuxa, o que dá conta da forte presença africana nestes bairros de Lisboa, sublinhando a sua importância no fado tal como ele existia na Lisboa de meados de oitocentos. Ao contrário do que acontece hoje, estes fadistas não são profissionais, pelo menos segundo a conotação que actualmente é dada ao termo, pois não praticam o fado senão por lazer, entretenimento e por razões de convívio. Ou seja, o fado funcionava para cada um destes personagens como uma forma identitária - individual ou colectiva - e nunca como um modo de vida. Ainda no sétimo capítulo de "Para uma História do Fado", Vieira Nery debruça-se sobre os seus instrumentos predilectos, analisando a forma como o cravo e o pianoforte foram sendo substituídos, ainda nos salões, ainda no tempo do lundum e das modinhas, por instrumentos como a viola e a hoje chamada guitarra portuguesa, introduzida em Portugal através da comunidade inglesa sediada no Porto. A derivação social do fado desde a marginália e a classe proletária até aos intelectuais, boémios e jornalistas, também é tratada neste capítulo, realçando a forma como chegou (regressou?) aos salões da nobreza e aos teatros de revista frequentados pela classe média. Um alargamento da sua base social que mereceu críticas de alguns dos seus cultores, já então agastados com o seu desvirtuamento. O sétimo número da colecção "O Fado do Público" apresenta ainda uma colectânea de fados, canções e baladas de Coimbra cuja selecção é da responsabilidade de José Anjos de Carvalho. Entre os temas escolhidos contam-se "Sonhar contigo oh Coimbra" de Luiz Goes, "Saudades de Coimbra" de Edmundo Bettencourt, "Quando os sino dobram" de Augusto Camacho, "Fado da ansiedade" de António Menano, "São tão lindos os teus olhos" de Fernando Rolim, "Fado Hilário" de Alexandre Herculano, "Canção das lágrimas" de Fernando Machado Soares, "Balada da torre d'Anto" de Luiz Goes, "Coro dos caídos" de José Afonso, "Solitário" de António Bernardino, "Vento não batas à porta" de Fernando Rolim e "Tempo que não passa" de José Mesquita. Esta incursão pelo fado de Coimbra vem acompanhada, além de mais um capítulo de "Para uma História do Fado", de textos de António de Almeida Santos e ilustrações de Fernando Guerreiro.

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