EXPRESSO: Cartaz

29-05-2002
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LIVROS Coroa de martírios Inclassificáveis Memórias onde a escrita camiliana se exalta entre sociologia e compaixão MEMÓRIAS DO CÁRCERE de Camilo Castelo Branco (Parceria A. M. Pereira, 2001, 447 págs., €19,70) Fátima Maldonado

LUIZ CARVALHO A Parceria António Maria Pereira publicou recentemente uma reedição de Memórias Do Cárcere, de Camilo Castelo Branco, comemorativa da inauguração da sede do Centro Português de Fotografia na Cadeia da Relação do Porto. Com «Introdução» de Aníbal Pinto de Castro e várias fotografias pertença do mesmo Centro. Muita dessa gente conheceu-a Camilo na prisão, colhendo de viva voz a história dos seus percalços e tristezas. O que torna este livro um objecto multidimensional, um corredor onde a imagem encaminha a escrita e ilumina as sombras das vidas consumadas em lusitano auto-de-fé. A Parceria António Maria Pereira publicou recentemente uma reedição dede Camilo Castelo Branco, comemorativa da inauguração da sede do Centro Português de Fotografia na Cadeia da Relação do Porto. Com «Introdução» de Aníbal Pinto de Castro e várias fotografias pertença do mesmo Centro. Muita dessa gente conheceu-a Camilo na prisão, colhendo de viva voz a história dos seus percalços e tristezas. O que torna este livro um objecto multidimensional, um corredor onde a imagem encaminha a escrita e ilumina as sombras das vidas consumadas em lusitano auto-de-fé. A 1 de Outubro de 1860 entra Camilo na Cadeia da Relação do Porto. Ana Plácido, pronunciada por adultério pelo marido, Manuel Pinheiro Alves, a 26 de Março, já ali ingressara a 6 de Junho. Camilo, fugido do Porto para não ser preso pelo mesmo crime de que também era acusado, acolhera-se na Quinta do Ermo, do seu amigo Vieira de Castro, de quem recentemente Pulido Valente publicou uma biografia. Mas o cansaço, o remorso, a culpabilidade fazem-no voltar para junto de Ana Plácido, a mulher fatal. São longos meses que os dois amantes têm de espiar até que a 16 de Outubro de 1861 serão absolvidos em julgamento público, embora os seus tormentos não cessem de modo nenhum, já que para a boa sociedade serão sempre intrusos e relapsos. Ana Plácido, os longos cabelos desatados, fumando o charuto emblemático, encostada às grades da prisão, não terá de certeza contribuído para modificar nada. E Camilo, a quem permitiam que saísse de vez em quando, só agravou tudo. Aproveitava para comprar botas à amante e passear-se nas ruas do Porto, com estas na mão para grande escândalo da burguesia tripeira. Ao entrar na cadeia levava uma mala carregada de clássicos, Homero, Ovídio, Charles Nodier, Musset, Tirso de Molina, o que muito o amparou. E depois o material humano que povoava as enxovias era um manancial de que se foi servindo à vontade e com o qual fabricou alguns dos seus melhores romances. António José Coutinho, cuja foto publicamos, um dos implicados na conjura do general Freire de Andrade, não morreu também na forca, aos 21 anos, por mero acaso. Talvez para mais tarde fornecer a Camilo «entrechos e minudências» para o Romance de um Homem Rico. A 1 de Outubro de 1860 entra Camilo na Cadeia da Relação do Porto. Ana Plácido, pronunciada por adultério pelo marido, Manuel Pinheiro Alves, a 26 de Março, já ali ingressara a 6 de Junho. Camilo, fugido do Porto para não ser preso pelo mesmo crime de que também era acusado, acolhera-se na Quinta do Ermo, do seu amigo Vieira de Castro, de quem recentemente Pulido Valente publicou uma biografia. Mas o cansaço, o remorso, a culpabilidade fazem-no voltar para junto de Ana Plácido, a mulher fatal. São longos meses que os dois amantes têm de espiar até que a 16 de Outubro de 1861 serão absolvidos em julgamento público, embora os seus tormentos não cessem de modo nenhum, já que para a boa sociedade serão sempre intrusos e relapsos. Ana Plácido, os longos cabelos desatados, fumando o charuto emblemático, encostada às grades da prisão, não terá de certeza contribuído para modificar nada. E Camilo, a quem permitiam que saísse de vez em quando, só agravou tudo. Aproveitava para comprar botas à amante e passear-se nas ruas do Porto, com estas na mão para grande escândalo da burguesia tripeira. Ao entrar na cadeia levava uma mala carregada de clássicos, Homero, Ovídio, Charles Nodier, Musset, Tirso de Molina, o que muito o amparou. E depois o material humano que povoava as enxovias era um manancial de que se foi servindo à vontade e com o qual fabricou alguns dos seus melhores romances. António José Coutinho, cuja foto publicamos, um dos implicados na conjura do general Freire de Andrade, não morreu também na forca, aos 21 anos, por mero acaso. Talvez para mais tarde fornecer a Camilo «entrechos e minudências» para o António Coutinho e, em baixo, à esquerda e à direita, respectivamente, Paula e o padre Manuel, detidos ao mesmo tempo que Camilo, deram-lhe matéria para vários romances Memórias do Cárcere é dos mais estupendos livros de Camilo. A situação-limite em que se encontra parece exacerbar-lhe a escrita, incendiando-a num histerismo muitas vezes onírico em que o país é a toalha onde pratica xadrez, manejando as almas dos proscritos como diabólicos ou inocentes peões. Porque ao escritor interessa desancar sem contemplações o Portugal roufenho que ainda hoje é o nosso. Um êxtase, uma espécie de droga cujo ódio o estimula na luta corpo-a-corpo de que ninguém sai indemne e muito menos ele. A história da família do seu amigo Vieira de Castro, que no «Ermo» lhe deu refúgio, é vitríolo puro: «A casa dos Vieiras é a única que mantém ainda, a despeito da equitativa Carta Constitucional, as prerrogativas e imunidades do couto.» No fim do século XIX ainda se vivia muito perto do feudalismo. E a escrita de Camilo ganha ímpeto, rebuscando sociologias que enxerta num delírio de imaginação que a ironia remata. O pai de Vieira de Castro, desembargador, e os tios, um ministro e bispo, e o outro, José Vieira, homem principal do seu concelho, eram omnipotentes. «Será deputado quem ele quiser, será absolvido pelo júri o réu que ele proteger, será intangível das presas da justiça o culpado que as suas telhas cobrirem», dizia-se do último. E também eram grandes jogadores de pau. «As mais memorandas façanhas dos Vieiras tinham o seu teatro na celebrada romaria da Senhora de Antime. Aí apareciam os três campeadores mascarados, como era de uso em mancebos de famílias d'alto porte. As máscaras afiavam as chanças doutros chibantes, e deste gracejar de mau agouro procedia o partirem-se as caras por debaixo das máscaras, como se as não quisessem para outro mister, ou as sacrificassem à padroeira da romagem, como os índios se estiram sob as rodas das carroças dos seus ídolos.» E é pena não haver espaço para comentar o ímpio retrato que Camilo faz de José Estêvão. 3 é dos mais estupendos livros de Camilo. A situação-limite em que se encontra parece exacerbar-lhe a escrita, incendiando-a num histerismo muitas vezes onírico em que o país é a toalha onde pratica xadrez, manejando as almas dos proscritos como diabólicos ou inocentes peões. Porque ao escritor interessa desancar sem contemplações o Portugal roufenho que ainda hoje é o nosso. Um êxtase, uma espécie de droga cujo ódio o estimula na luta corpo-a-corpo de que ninguém sai indemne e muito menos ele. A história da família do seu amigo Vieira de Castro, que no «Ermo» lhe deu refúgio, é vitríolo puro: «A casa dos Vieiras é a única que mantém ainda, a despeito da equitativa Carta Constitucional, as prerrogativas e imunidades do couto.» No fim do século XIX ainda se vivia muito perto do feudalismo. E a escrita de Camilo ganha ímpeto, rebuscando sociologias que enxerta num delírio de imaginação que a ironia remata. O pai de Vieira de Castro, desembargador, e os tios, um ministro e bispo, e o outro, José Vieira, homem principal do seu concelho, eram omnipotentes. «Será deputado quem ele quiser, será absolvido pelo júri o réu que ele proteger, será intangível das presas da justiça o culpado que as suas telhas cobrirem», dizia-se do último. E também eram grandes jogadores de pau. «As mais memorandas façanhas dos Vieiras tinham o seu teatro na celebrada romaria da Senhora de Antime. Aí apareciam os três campeadores mascarados, como era de uso em mancebos de famílias d'alto porte. As máscaras afiavam as chanças doutros chibantes, e deste gracejar de mau agouro procedia o partirem-se as caras por debaixo das máscaras, como se as não quisessem para outro mister, ou as sacrificassem à padroeira da romagem, como os índios se estiram sob as rodas das carroças dos seus ídolos.» E é pena não haver espaço para comentar o ímpio retrato que Camilo faz de José Estêvão.

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LIVROS Coroa de martírios Inclassificáveis Memórias onde a escrita camiliana se exalta entre sociologia e compaixão MEMÓRIAS DO CÁRCERE de Camilo Castelo Branco (Parceria A. M. Pereira, 2001, 447 págs., €19,70) Fátima Maldonado

LUIZ CARVALHO A Parceria António Maria Pereira publicou recentemente uma reedição de Memórias Do Cárcere, de Camilo Castelo Branco, comemorativa da inauguração da sede do Centro Português de Fotografia na Cadeia da Relação do Porto. Com «Introdução» de Aníbal Pinto de Castro e várias fotografias pertença do mesmo Centro. Muita dessa gente conheceu-a Camilo na prisão, colhendo de viva voz a história dos seus percalços e tristezas. O que torna este livro um objecto multidimensional, um corredor onde a imagem encaminha a escrita e ilumina as sombras das vidas consumadas em lusitano auto-de-fé. A Parceria António Maria Pereira publicou recentemente uma reedição dede Camilo Castelo Branco, comemorativa da inauguração da sede do Centro Português de Fotografia na Cadeia da Relação do Porto. Com «Introdução» de Aníbal Pinto de Castro e várias fotografias pertença do mesmo Centro. Muita dessa gente conheceu-a Camilo na prisão, colhendo de viva voz a história dos seus percalços e tristezas. O que torna este livro um objecto multidimensional, um corredor onde a imagem encaminha a escrita e ilumina as sombras das vidas consumadas em lusitano auto-de-fé. A 1 de Outubro de 1860 entra Camilo na Cadeia da Relação do Porto. Ana Plácido, pronunciada por adultério pelo marido, Manuel Pinheiro Alves, a 26 de Março, já ali ingressara a 6 de Junho. Camilo, fugido do Porto para não ser preso pelo mesmo crime de que também era acusado, acolhera-se na Quinta do Ermo, do seu amigo Vieira de Castro, de quem recentemente Pulido Valente publicou uma biografia. Mas o cansaço, o remorso, a culpabilidade fazem-no voltar para junto de Ana Plácido, a mulher fatal. São longos meses que os dois amantes têm de espiar até que a 16 de Outubro de 1861 serão absolvidos em julgamento público, embora os seus tormentos não cessem de modo nenhum, já que para a boa sociedade serão sempre intrusos e relapsos. Ana Plácido, os longos cabelos desatados, fumando o charuto emblemático, encostada às grades da prisão, não terá de certeza contribuído para modificar nada. E Camilo, a quem permitiam que saísse de vez em quando, só agravou tudo. Aproveitava para comprar botas à amante e passear-se nas ruas do Porto, com estas na mão para grande escândalo da burguesia tripeira. Ao entrar na cadeia levava uma mala carregada de clássicos, Homero, Ovídio, Charles Nodier, Musset, Tirso de Molina, o que muito o amparou. E depois o material humano que povoava as enxovias era um manancial de que se foi servindo à vontade e com o qual fabricou alguns dos seus melhores romances. António José Coutinho, cuja foto publicamos, um dos implicados na conjura do general Freire de Andrade, não morreu também na forca, aos 21 anos, por mero acaso. Talvez para mais tarde fornecer a Camilo «entrechos e minudências» para o Romance de um Homem Rico. A 1 de Outubro de 1860 entra Camilo na Cadeia da Relação do Porto. Ana Plácido, pronunciada por adultério pelo marido, Manuel Pinheiro Alves, a 26 de Março, já ali ingressara a 6 de Junho. Camilo, fugido do Porto para não ser preso pelo mesmo crime de que também era acusado, acolhera-se na Quinta do Ermo, do seu amigo Vieira de Castro, de quem recentemente Pulido Valente publicou uma biografia. Mas o cansaço, o remorso, a culpabilidade fazem-no voltar para junto de Ana Plácido, a mulher fatal. São longos meses que os dois amantes têm de espiar até que a 16 de Outubro de 1861 serão absolvidos em julgamento público, embora os seus tormentos não cessem de modo nenhum, já que para a boa sociedade serão sempre intrusos e relapsos. Ana Plácido, os longos cabelos desatados, fumando o charuto emblemático, encostada às grades da prisão, não terá de certeza contribuído para modificar nada. E Camilo, a quem permitiam que saísse de vez em quando, só agravou tudo. Aproveitava para comprar botas à amante e passear-se nas ruas do Porto, com estas na mão para grande escândalo da burguesia tripeira. Ao entrar na cadeia levava uma mala carregada de clássicos, Homero, Ovídio, Charles Nodier, Musset, Tirso de Molina, o que muito o amparou. E depois o material humano que povoava as enxovias era um manancial de que se foi servindo à vontade e com o qual fabricou alguns dos seus melhores romances. António José Coutinho, cuja foto publicamos, um dos implicados na conjura do general Freire de Andrade, não morreu também na forca, aos 21 anos, por mero acaso. Talvez para mais tarde fornecer a Camilo «entrechos e minudências» para o António Coutinho e, em baixo, à esquerda e à direita, respectivamente, Paula e o padre Manuel, detidos ao mesmo tempo que Camilo, deram-lhe matéria para vários romances Memórias do Cárcere é dos mais estupendos livros de Camilo. A situação-limite em que se encontra parece exacerbar-lhe a escrita, incendiando-a num histerismo muitas vezes onírico em que o país é a toalha onde pratica xadrez, manejando as almas dos proscritos como diabólicos ou inocentes peões. Porque ao escritor interessa desancar sem contemplações o Portugal roufenho que ainda hoje é o nosso. Um êxtase, uma espécie de droga cujo ódio o estimula na luta corpo-a-corpo de que ninguém sai indemne e muito menos ele. A história da família do seu amigo Vieira de Castro, que no «Ermo» lhe deu refúgio, é vitríolo puro: «A casa dos Vieiras é a única que mantém ainda, a despeito da equitativa Carta Constitucional, as prerrogativas e imunidades do couto.» No fim do século XIX ainda se vivia muito perto do feudalismo. E a escrita de Camilo ganha ímpeto, rebuscando sociologias que enxerta num delírio de imaginação que a ironia remata. O pai de Vieira de Castro, desembargador, e os tios, um ministro e bispo, e o outro, José Vieira, homem principal do seu concelho, eram omnipotentes. «Será deputado quem ele quiser, será absolvido pelo júri o réu que ele proteger, será intangível das presas da justiça o culpado que as suas telhas cobrirem», dizia-se do último. E também eram grandes jogadores de pau. «As mais memorandas façanhas dos Vieiras tinham o seu teatro na celebrada romaria da Senhora de Antime. Aí apareciam os três campeadores mascarados, como era de uso em mancebos de famílias d'alto porte. As máscaras afiavam as chanças doutros chibantes, e deste gracejar de mau agouro procedia o partirem-se as caras por debaixo das máscaras, como se as não quisessem para outro mister, ou as sacrificassem à padroeira da romagem, como os índios se estiram sob as rodas das carroças dos seus ídolos.» E é pena não haver espaço para comentar o ímpio retrato que Camilo faz de José Estêvão. 3 é dos mais estupendos livros de Camilo. A situação-limite em que se encontra parece exacerbar-lhe a escrita, incendiando-a num histerismo muitas vezes onírico em que o país é a toalha onde pratica xadrez, manejando as almas dos proscritos como diabólicos ou inocentes peões. Porque ao escritor interessa desancar sem contemplações o Portugal roufenho que ainda hoje é o nosso. Um êxtase, uma espécie de droga cujo ódio o estimula na luta corpo-a-corpo de que ninguém sai indemne e muito menos ele. A história da família do seu amigo Vieira de Castro, que no «Ermo» lhe deu refúgio, é vitríolo puro: «A casa dos Vieiras é a única que mantém ainda, a despeito da equitativa Carta Constitucional, as prerrogativas e imunidades do couto.» No fim do século XIX ainda se vivia muito perto do feudalismo. E a escrita de Camilo ganha ímpeto, rebuscando sociologias que enxerta num delírio de imaginação que a ironia remata. O pai de Vieira de Castro, desembargador, e os tios, um ministro e bispo, e o outro, José Vieira, homem principal do seu concelho, eram omnipotentes. «Será deputado quem ele quiser, será absolvido pelo júri o réu que ele proteger, será intangível das presas da justiça o culpado que as suas telhas cobrirem», dizia-se do último. E também eram grandes jogadores de pau. «As mais memorandas façanhas dos Vieiras tinham o seu teatro na celebrada romaria da Senhora de Antime. Aí apareciam os três campeadores mascarados, como era de uso em mancebos de famílias d'alto porte. As máscaras afiavam as chanças doutros chibantes, e deste gracejar de mau agouro procedia o partirem-se as caras por debaixo das máscaras, como se as não quisessem para outro mister, ou as sacrificassem à padroeira da romagem, como os índios se estiram sob as rodas das carroças dos seus ídolos.» E é pena não haver espaço para comentar o ímpio retrato que Camilo faz de José Estêvão.

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