A melancolia do quotidiano doméstico

31-12-2002
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A Melancolia do Quotidiano Doméstico

Sábado, 28 de Dezembro de 2002

Primeira exposição antológica da obra de Morandi em Portugal decorre até ao fim do mês de Janeiro

%Luísa Soares de Oliveira

Pinturas, aguarelas, desenhos e gravuras de pequeno formato, pintadas com cores vindas de outro tempo, representando quase sistematicamente a mesma série sóbria de objectos vindos do quotidiano mais pobre preenchem as salas do primeiro andar do edifício da Fundação Arpad Szènes - Vieira da Silva, em Lisboa. Trata-se da primeira exposição antológica da obra deste pintor a ser apresentada em Portugal, naquela que é a ocasião ímpar, e provavelmente única, de apreciar a obra de Giorgio Morandi.

Como sempre acontece com as exposições que aqui têm lugar, existe uma relação entre a obra do artista em destaque e a vida ou a obra do casal de pintores Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szènes. Neste caso, essa relação estabeleceu-se pela via da admiração que estes últimos devotavam ao primeiro. Arpad Szènes dizia mesmo que Morandi era um pintor para os pintores. E, se nunca o conheceram pessoalmente, tanto Vieira da Silva como Arpad debruçaram-se com frequência sobre as pequenas telas e as obras sobre papel do pintor italiano.

De facto, a apreciação de Arpad - o "pintor para pintores" com que costumava qualificar a personalidade de Morandi - justifica-se pelas próprias características da obra de ambos. Em Morandi, a obra é um estudo exaustivo, sistemático e exigente das variações que a luz produz sobre a forma e a côr. Para Arpad, sobretudo no período final da sua vida, a luz adquire também uma importância preponderante. Não espanta, assim, que tenha visto em Morandi o modelo do artista a seguir.

A montagem da exposição segue o critério já clássico de apresentar as obras em sequência cronológica e de as dividir consoante o tipo de suporte utilizado. A mais antiga, uma natureza morta de 1914, decompõe as formas dos objectos já preferidos então por Morandi em planos diversos, à maneira do cubismo sintético. Mas rapidamente o artista se concentraria no trabalho dos efeitos cromáticos e lumínicos da luz sobre a forma, em vez do trabalho de raiz intelectual que o cubismo, afinal, sempre foi. Morandi trabalhava várias telas simultaneamente, sempre com modelo, e em diferentes horas dos dias que eram sempre as mesmas para dada pintura. Por isso, a sua obra possui o carácter intemporal que a ausência de referências à velocidade ou ao tempo que passa lhe confere.

De 1920 data a tela mais antiga nesta exposição que representa um vaso de flores, também este um motivo recorrente na obra do pintor. Tal como para as naturezas mortas feitas exclusivamente com objectos, a representação do vaso e das flores forma um só bloco na superfície da tela, tanto mais que Morandi não se esquivava, quando achava que tal era necessário, a delinear com um contorno fino a negro o motivo destacado. A tinta, por outro lado, possui uma espessura que a aparenta à superfície rugosa de uma parede com frescos; e esta referência ao antigo, às origens civilizadas da pintura italiana (ou seja, aos frescos romanos) está também presente no modo como Morandi preparava as tintas, moendo pacientemente os pigmentos, misturando-os com o ligante, esperando que o preparado secasse sobre a tela antes de dar a segunda ou a terceira demãos.

Nesta via que se propôs seguir, a do estudo dos efeitos de luz sobre os objectos inanimados, Morandi considera-se como o continuador de Seurat, Monet e, sobretudo, Cézanne; chegou aliás a afirmar que nunca nenhum pintor tinha levado as consequências do impressionismo tão longe quanto ele próprio. Por isso, pouco lhe interessou sair dos dois ateliers em que trabalhava e que ficavam ambos nos arredores de Bolonha. Sabe-se que já no final da vida, nos anos 50, tirou passaporte para se deslocar à Alemanha, onde a sua obra iria ser exposta. Mas foi esta a única viagem que realizou ao estrangeiro.

De facto, Morandi nunca considerou que fosse necessário viajar - ou seja, ver pintura em museus internacionais - para poder ser pintor. Em novo, interessou-se pela obra de De Chirico e pela pintura metafísica; mais tarde, aproximou-se do grupo Valori Plastici, que se propunha combinar o impulso dinâmico das vanguardas artísticas com o estudo do classicismo. Nunca foi inteiramente adoptado por qualquer regime político, nem sequer pelo fascismo que também propunha o "regresso à ordem" clássica para as artes. E isto talvez tenha a ver com a qualidade visceralmente abstracta de toda a sua obra.

Há uma melancolia nas naturezas mortas e nas paisagens de Morandi que indicam uma falta constante, e por isso uma busca também constante, de qualquer coisa que não está lá.. Na espessura da tinta e no branco sempre sujo de uma face iluminada, é a estrutura subjacente a toda a matéria que o artista procura incessantemente. Os desenhos que fez e as aguarelas que pintou ajudam-nos a entender esta procura. Naqueles, uma linha pouco firme desenha o contorno de uma composição, ignorando valores cromáticos e tonais; por vezes, um duplo cinza mostra-nos a outra face do objecto, que é sempre a sombra que ele projecta na parede. Já nas aguarelas, são os matizes cromáticos que são sistematicamente ignorados; e o pincel traça apenas a mancha da composição no espaço livre da folha de papel.

Morandi praticou também a água-forte sobre cobre, e a exposição mostra 20 obras deste tipo vindas, como todas as outras peças sobre papel, do Museu Morandi. Também aqui o pintor serve-se aqui da técnica mais classicizante para reproduzir, com uma mestria indiscutível, os mesmos motivos que o cativaram na pintura e no desenho. Os títulos - "Natureza morta com onze objectos", por exemplo - acentuam também a abstracção a que submete os modelos na sua procura sempre renovada da espiritualidade do quotidiano.

Saliente-se ainda que o mérito desta exposição é acrescido pelo facto de se tratar de uma iniciativa conjunta desse museu e da Fundação Arpad Szènes-Vieira da Silva, que envolveu empréstimos de outras instituições como as galerias Uffizi, o Museo d'Arte Contemporanea de Florença, o Museo d'Arte Moderna e Contemporanea di Trento e Rovereto, a Galleria Gian Ferrari de Milão, entre outras.

A Melancolia do Quotidiano Doméstico

Sábado, 28 de Dezembro de 2002

Primeira exposição antológica da obra de Morandi em Portugal decorre até ao fim do mês de Janeiro

%Luísa Soares de Oliveira

Pinturas, aguarelas, desenhos e gravuras de pequeno formato, pintadas com cores vindas de outro tempo, representando quase sistematicamente a mesma série sóbria de objectos vindos do quotidiano mais pobre preenchem as salas do primeiro andar do edifício da Fundação Arpad Szènes - Vieira da Silva, em Lisboa. Trata-se da primeira exposição antológica da obra deste pintor a ser apresentada em Portugal, naquela que é a ocasião ímpar, e provavelmente única, de apreciar a obra de Giorgio Morandi.

Como sempre acontece com as exposições que aqui têm lugar, existe uma relação entre a obra do artista em destaque e a vida ou a obra do casal de pintores Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szènes. Neste caso, essa relação estabeleceu-se pela via da admiração que estes últimos devotavam ao primeiro. Arpad Szènes dizia mesmo que Morandi era um pintor para os pintores. E, se nunca o conheceram pessoalmente, tanto Vieira da Silva como Arpad debruçaram-se com frequência sobre as pequenas telas e as obras sobre papel do pintor italiano.

De facto, a apreciação de Arpad - o "pintor para pintores" com que costumava qualificar a personalidade de Morandi - justifica-se pelas próprias características da obra de ambos. Em Morandi, a obra é um estudo exaustivo, sistemático e exigente das variações que a luz produz sobre a forma e a côr. Para Arpad, sobretudo no período final da sua vida, a luz adquire também uma importância preponderante. Não espanta, assim, que tenha visto em Morandi o modelo do artista a seguir.

A montagem da exposição segue o critério já clássico de apresentar as obras em sequência cronológica e de as dividir consoante o tipo de suporte utilizado. A mais antiga, uma natureza morta de 1914, decompõe as formas dos objectos já preferidos então por Morandi em planos diversos, à maneira do cubismo sintético. Mas rapidamente o artista se concentraria no trabalho dos efeitos cromáticos e lumínicos da luz sobre a forma, em vez do trabalho de raiz intelectual que o cubismo, afinal, sempre foi. Morandi trabalhava várias telas simultaneamente, sempre com modelo, e em diferentes horas dos dias que eram sempre as mesmas para dada pintura. Por isso, a sua obra possui o carácter intemporal que a ausência de referências à velocidade ou ao tempo que passa lhe confere.

De 1920 data a tela mais antiga nesta exposição que representa um vaso de flores, também este um motivo recorrente na obra do pintor. Tal como para as naturezas mortas feitas exclusivamente com objectos, a representação do vaso e das flores forma um só bloco na superfície da tela, tanto mais que Morandi não se esquivava, quando achava que tal era necessário, a delinear com um contorno fino a negro o motivo destacado. A tinta, por outro lado, possui uma espessura que a aparenta à superfície rugosa de uma parede com frescos; e esta referência ao antigo, às origens civilizadas da pintura italiana (ou seja, aos frescos romanos) está também presente no modo como Morandi preparava as tintas, moendo pacientemente os pigmentos, misturando-os com o ligante, esperando que o preparado secasse sobre a tela antes de dar a segunda ou a terceira demãos.

Nesta via que se propôs seguir, a do estudo dos efeitos de luz sobre os objectos inanimados, Morandi considera-se como o continuador de Seurat, Monet e, sobretudo, Cézanne; chegou aliás a afirmar que nunca nenhum pintor tinha levado as consequências do impressionismo tão longe quanto ele próprio. Por isso, pouco lhe interessou sair dos dois ateliers em que trabalhava e que ficavam ambos nos arredores de Bolonha. Sabe-se que já no final da vida, nos anos 50, tirou passaporte para se deslocar à Alemanha, onde a sua obra iria ser exposta. Mas foi esta a única viagem que realizou ao estrangeiro.

De facto, Morandi nunca considerou que fosse necessário viajar - ou seja, ver pintura em museus internacionais - para poder ser pintor. Em novo, interessou-se pela obra de De Chirico e pela pintura metafísica; mais tarde, aproximou-se do grupo Valori Plastici, que se propunha combinar o impulso dinâmico das vanguardas artísticas com o estudo do classicismo. Nunca foi inteiramente adoptado por qualquer regime político, nem sequer pelo fascismo que também propunha o "regresso à ordem" clássica para as artes. E isto talvez tenha a ver com a qualidade visceralmente abstracta de toda a sua obra.

Há uma melancolia nas naturezas mortas e nas paisagens de Morandi que indicam uma falta constante, e por isso uma busca também constante, de qualquer coisa que não está lá.. Na espessura da tinta e no branco sempre sujo de uma face iluminada, é a estrutura subjacente a toda a matéria que o artista procura incessantemente. Os desenhos que fez e as aguarelas que pintou ajudam-nos a entender esta procura. Naqueles, uma linha pouco firme desenha o contorno de uma composição, ignorando valores cromáticos e tonais; por vezes, um duplo cinza mostra-nos a outra face do objecto, que é sempre a sombra que ele projecta na parede. Já nas aguarelas, são os matizes cromáticos que são sistematicamente ignorados; e o pincel traça apenas a mancha da composição no espaço livre da folha de papel.

Morandi praticou também a água-forte sobre cobre, e a exposição mostra 20 obras deste tipo vindas, como todas as outras peças sobre papel, do Museu Morandi. Também aqui o pintor serve-se aqui da técnica mais classicizante para reproduzir, com uma mestria indiscutível, os mesmos motivos que o cativaram na pintura e no desenho. Os títulos - "Natureza morta com onze objectos", por exemplo - acentuam também a abstracção a que submete os modelos na sua procura sempre renovada da espiritualidade do quotidiano.

Saliente-se ainda que o mérito desta exposição é acrescido pelo facto de se tratar de uma iniciativa conjunta desse museu e da Fundação Arpad Szènes-Vieira da Silva, que envolveu empréstimos de outras instituições como as galerias Uffizi, o Museo d'Arte Contemporanea de Florença, o Museo d'Arte Moderna e Contemporanea di Trento e Rovereto, a Galleria Gian Ferrari de Milão, entre outras.

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