E Federico va...?

19-08-2003
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E Federico Va...?

Sexta-feira, 15 de Agosto de 2003

%K.G.

Retrato-robot do seguidor felliniano? Aceitam-se inscrições. Ao que parece, são uma espécie rara. Se é certo que, encorajados pela evocação obrigatória, há hoje textos revisionistas em jeito de contricção - "Durante muito tempo não apreciei Fellini. (...) Enganei-me em relação a Fellini", assim começa um dos textos do dossier que a revista francesa "Positif" de Maio dedica ao realizador -, também parece pouco provável alguém assumir-se como felliniano incondicional. Seja como for, é também para isso que servem as retrospectivas: para dar lugar a (re)descobertas, para se abrirem a novas visões.

Traçámos o plano: como é que fellinianos e não-fellinianos olham, hoje, para a obra de "il maestro"? Localizámos suspeitos - Vicente Jorge Silva em representação dos primeiros (indício número um: o emocionado e elogioso editorial no PÚBLICO quando da morte de Fellini), e Eduardo Prado Coelho do outro lado - que, desde logo, recusaram epítetos. Nem felliniano, nem anti-felliniano: assumida, assumidamente, só são antonionianos. Fellini foi o herói da geração deles, sem ter sido o herói particular de algum deles. E, no entanto, à época, Fellini reunia um clube de indefectíveis bem mais vasto do que Antonioni. Sim, eles recordam-se.

"A sensibilidade felliniana é profundamente barroca, muito exuberante, com um lado que oscila entre o grande espectáculo e as lantejoulas do espectáculo de feira", refere Eduardo Prado Coelho como quem se posiciona à distância. "Ao mesmo tempo, tem uma espécie de poesia explícita, que é muito contagiante, e por isso penso até que em determinada altura Fellini tinha muito mais adeptos do que Antonioni."

Falamos de uma cinefilia muito mais fundada ao nível do público do que numa crítica pouco habituada a associar autorismo a um sentido do espectáculo, irredutível em Fellini - não por acaso, é "Oito e Meio" que habitualmente se aponta como obra máxima, porventura mais sintonizada com a experimentação modernista do cinema do seu tempo, abismo pendurado sobre o vazio, filme sobre o cinema. Filme em relação ao qual Vicente Jorge Silva teve uma reacção "muito epidérmica", de afastamento, mas que o tempo só lhe tem provado que não tinha razão. "Desde então, devo tê-lo visto mais de dez vezes e parece-me sempre melhor, cada vez mais misterioso no sentido de suscitar leituras muito mais ricas do que da primeira vez." Aconteceu-lhe com outros filmes, como "La dolce vita", julgado "moralista" à altura - no seu caso, a obra felliniana tem sido alvo de uma revisão tendencialmente positiva, exceptuando casos "irremediáveis", como "Julieta dos Espíritos", "Casanova" ou "A Cidade das Mulheres", "fellinianos num grau menor, caricaturas do próprio Fellini".

A propósito de reacções epidérmicas: é o risco de uma obra dada a extravagâncias feéricas e de um criador absorvido em si mesmo. Como João Bénard da Costa escrevia numa crónica do PÚBLICO, em finais do ano passado, onde assumia não fazer parte da fileira de fiéis fellinianos,"é uma questão de pele, não é uma questão de olhos". É o tipo de incompatibilidade que se poderá invocar a propósito do cinema de Emir Kusturica, um dos realizadores assumidamente mais fellinianos e em relação ao qual é pública a aversão de Eduardo Prado Coelho. Junte-se-lhe outro pretenso herdeiro felliniano, Roberto Benigni: "São dois cineastas de que não gosto. Benigni é um cineasta onde os sentimentos têm uma dimensão um bocadinho demagógica, e no Kusturica existe uma espécie de magia permanente que me parece mais colada do que autêntica."

E no entanto, Federico, hoje, va...? "Admito que a revisão, passados alguns anos, seja uma descoberta de outras dimensões e, de certo modo, tenho uma espécie de ansiedade de reencontrar Fellini porque tenho a impressão que outros aspectos menos visíveis e mais secretos irão ultrapassar o lado um bocadinho ruidoso", adianta Prado Coelho.

"Estou convencido de que 'Amarcord' vai ser uma descoberta para muita gente que não viu o filme", profetiza Vicente Jorge Silva. "Podia acontecer que, com o tempo, as coisas que me tinham fascinado no princípio se tivessem tornado clichés. Foi o contrário: as coisas que à altura me pareceram óbvias tornaram-se menos óbvias, o que é um percurso curioso."

Dest

Retrato-robot do seguidor felliniano? Aceitam-se inscrições.

E Federico Va...?

Sexta-feira, 15 de Agosto de 2003

%K.G.

Retrato-robot do seguidor felliniano? Aceitam-se inscrições. Ao que parece, são uma espécie rara. Se é certo que, encorajados pela evocação obrigatória, há hoje textos revisionistas em jeito de contricção - "Durante muito tempo não apreciei Fellini. (...) Enganei-me em relação a Fellini", assim começa um dos textos do dossier que a revista francesa "Positif" de Maio dedica ao realizador -, também parece pouco provável alguém assumir-se como felliniano incondicional. Seja como for, é também para isso que servem as retrospectivas: para dar lugar a (re)descobertas, para se abrirem a novas visões.

Traçámos o plano: como é que fellinianos e não-fellinianos olham, hoje, para a obra de "il maestro"? Localizámos suspeitos - Vicente Jorge Silva em representação dos primeiros (indício número um: o emocionado e elogioso editorial no PÚBLICO quando da morte de Fellini), e Eduardo Prado Coelho do outro lado - que, desde logo, recusaram epítetos. Nem felliniano, nem anti-felliniano: assumida, assumidamente, só são antonionianos. Fellini foi o herói da geração deles, sem ter sido o herói particular de algum deles. E, no entanto, à época, Fellini reunia um clube de indefectíveis bem mais vasto do que Antonioni. Sim, eles recordam-se.

"A sensibilidade felliniana é profundamente barroca, muito exuberante, com um lado que oscila entre o grande espectáculo e as lantejoulas do espectáculo de feira", refere Eduardo Prado Coelho como quem se posiciona à distância. "Ao mesmo tempo, tem uma espécie de poesia explícita, que é muito contagiante, e por isso penso até que em determinada altura Fellini tinha muito mais adeptos do que Antonioni."

Falamos de uma cinefilia muito mais fundada ao nível do público do que numa crítica pouco habituada a associar autorismo a um sentido do espectáculo, irredutível em Fellini - não por acaso, é "Oito e Meio" que habitualmente se aponta como obra máxima, porventura mais sintonizada com a experimentação modernista do cinema do seu tempo, abismo pendurado sobre o vazio, filme sobre o cinema. Filme em relação ao qual Vicente Jorge Silva teve uma reacção "muito epidérmica", de afastamento, mas que o tempo só lhe tem provado que não tinha razão. "Desde então, devo tê-lo visto mais de dez vezes e parece-me sempre melhor, cada vez mais misterioso no sentido de suscitar leituras muito mais ricas do que da primeira vez." Aconteceu-lhe com outros filmes, como "La dolce vita", julgado "moralista" à altura - no seu caso, a obra felliniana tem sido alvo de uma revisão tendencialmente positiva, exceptuando casos "irremediáveis", como "Julieta dos Espíritos", "Casanova" ou "A Cidade das Mulheres", "fellinianos num grau menor, caricaturas do próprio Fellini".

A propósito de reacções epidérmicas: é o risco de uma obra dada a extravagâncias feéricas e de um criador absorvido em si mesmo. Como João Bénard da Costa escrevia numa crónica do PÚBLICO, em finais do ano passado, onde assumia não fazer parte da fileira de fiéis fellinianos,"é uma questão de pele, não é uma questão de olhos". É o tipo de incompatibilidade que se poderá invocar a propósito do cinema de Emir Kusturica, um dos realizadores assumidamente mais fellinianos e em relação ao qual é pública a aversão de Eduardo Prado Coelho. Junte-se-lhe outro pretenso herdeiro felliniano, Roberto Benigni: "São dois cineastas de que não gosto. Benigni é um cineasta onde os sentimentos têm uma dimensão um bocadinho demagógica, e no Kusturica existe uma espécie de magia permanente que me parece mais colada do que autêntica."

E no entanto, Federico, hoje, va...? "Admito que a revisão, passados alguns anos, seja uma descoberta de outras dimensões e, de certo modo, tenho uma espécie de ansiedade de reencontrar Fellini porque tenho a impressão que outros aspectos menos visíveis e mais secretos irão ultrapassar o lado um bocadinho ruidoso", adianta Prado Coelho.

"Estou convencido de que 'Amarcord' vai ser uma descoberta para muita gente que não viu o filme", profetiza Vicente Jorge Silva. "Podia acontecer que, com o tempo, as coisas que me tinham fascinado no princípio se tivessem tornado clichés. Foi o contrário: as coisas que à altura me pareceram óbvias tornaram-se menos óbvias, o que é um percurso curioso."

Dest

Retrato-robot do seguidor felliniano? Aceitam-se inscrições.

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