Os bons efeitos colaterais

31-12-2002
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Os Bons Efeitos Colaterais

Sábado, 28 de Dezembro de 2002

%Teresa Patrício Gouveia

Ler um livro pode ser uma experiência como a que teríamos se numa noite de Inverno um viajante nos batesse à porta e entrasse sem ser convidado, podendo incendiar e devastar a casa inteira, sem deixar pedra sobre pedra.

É esta a bela imagem que George Steiner nos dá do confronto, que sempre nos transforma, com a presença real da música, da arte e da literatura.

"Se Uma Noite de Inverno Um Viajante..." foi justamente o livro que comprei da primeira série da colecção Mil Folhas que o PÚBLICO em boa hora juntou ao jornal, em campanha de "promoção". Através dela, quem sabe quantos leitores de jornais, que não entram habitualmente nas livrarias, pegarão num livro e depois num outro, na sua banca de jornal.

Haverá também os que comprarão a colecção. Lerão uns livros; outros ficarão intactos, por agora, na estante. Um amigo meu costuma recordar-me que o seu pai, Werner Sombart, considerava que as bibliotecas que temos em casa, para serem dignas desse nome, têm que ter pelo menos um terço dos livros ainda não lidos. E eu concordo. Além disso, algum dia, esses livros não lidos irão parar às mãos de um leitor.

Admito ainda que outros, ao comprarem um título que lhes interessa, folheiem o jornal, que não costumam ler e descubram o prazer das notícias do mundo, frescas pela manhã, e ganhem curiosidade pelo que vai acontecendo aos seus contemporâneos, próximos e longínquos, naquele mesmo dia ou no dia anterior.

Não partilho a repugnância de Augusto M. Seabra (v. PÚBLICO de 3/12) pela actividade promocional e concorrencial levada a cabo por "jornais de referência": Todos sabemos que o reduzido número de leitores, sobretudo para jornais de referência, tem, em Portugal, causas que esses jornais não podem por si só resolver em tempo útil e que os "benefícios colaterais" (aumento de vendas), embora colaterais, são benefícios e não "danos", se significarem a viabilidade do jornal e a consequente sustentação de um padrão. Prefiro um bom jornal com um faqueiro do que um jornal sem faqueiro que transija com a qualidade intrínseca do seu conteúdo, para agarrar mais leitores. E, quer se goste quer não, estamos no mercado. Quanto ao perigo da perturbação que "produtos externos" podem trazer à percepção do produto principal (o jornal e seus conteúdos informativos), confundindo-os, caro Augusto, não vejo como numa sociedade em que a linguagem da publicidade é tão imediata e naturalmente entendida, alguém, mesmo por mais "analfabeto", possa alguma vez confundir a identidade do produto promovido com a do "subproduto" promocional, seja ele um faqueiro, um DVD ou até um livro. Mas, para não maçar agora os leitores, podemos continuar esta conversa sobre um aprazado café.

Bem-vinda, assim, a segunda série da Mil Folhas. Não comento a escolha: é uma boa lista entre mil outras possíveis. Mas registo a preferência quase exclusiva por romances. Ora, ainda que sem sair da "literatura absoluta" (como Roberto Calasso designa a que encontra em si mesma o seu fundamento e se basta a si própria), a poesia poderia, aqui ou ali, aparecer.

E, saindo da literatura mas ficando ainda na melhor prosa, porque não as memórias, a história, as viagens, o ensaio político? A melhor prosa hoje, mais do que nos romances, porventura é aí que está. Nas várias línguas em que são escritas estas obras da Mil Folhas e nalguns casos também na língua portuguesa. Não sei quem disse mesmo que, se Shakespeare escrevesse hoje, escreveria para a televisão.

Qualquer destes géneros proporciona paragem e concentração próprias do acto imóvel e solitário de ler. Qualquer destes géneros nos compensa de uma outra leitura descontínua, intermitente, sincopada, que praticamos de manhã à noite, lendo "fórmulas breves": signos, mensagens, sinais luminosos, ecrãs de computador e, claro, notícias no jornal.

Mas a verdade é que só a "literatura absoluta" nos resgata do verbo conjugado no presente que lemos nos jornais. Ela - como, aliás, o cinema e a arte em geral - é expressão da nossa liberdade de, ao conjugarmos os verbos no futuro, no conjuntivo ou no condicional, concebermos um mundo alternativo e de (ainda Steiner) "recusarmos a inevitabilidade bruta ou o despotismo do facto". É mesmo "sob a pressão das penas e do júbilo, do amor e do ódio dos humanos" - que os jornais nos servem de manhã - "que a língua se torna literatura".

E a propósito, uma intimação: Feliz Ano Novo!

Os Bons Efeitos Colaterais

Sábado, 28 de Dezembro de 2002

%Teresa Patrício Gouveia

Ler um livro pode ser uma experiência como a que teríamos se numa noite de Inverno um viajante nos batesse à porta e entrasse sem ser convidado, podendo incendiar e devastar a casa inteira, sem deixar pedra sobre pedra.

É esta a bela imagem que George Steiner nos dá do confronto, que sempre nos transforma, com a presença real da música, da arte e da literatura.

"Se Uma Noite de Inverno Um Viajante..." foi justamente o livro que comprei da primeira série da colecção Mil Folhas que o PÚBLICO em boa hora juntou ao jornal, em campanha de "promoção". Através dela, quem sabe quantos leitores de jornais, que não entram habitualmente nas livrarias, pegarão num livro e depois num outro, na sua banca de jornal.

Haverá também os que comprarão a colecção. Lerão uns livros; outros ficarão intactos, por agora, na estante. Um amigo meu costuma recordar-me que o seu pai, Werner Sombart, considerava que as bibliotecas que temos em casa, para serem dignas desse nome, têm que ter pelo menos um terço dos livros ainda não lidos. E eu concordo. Além disso, algum dia, esses livros não lidos irão parar às mãos de um leitor.

Admito ainda que outros, ao comprarem um título que lhes interessa, folheiem o jornal, que não costumam ler e descubram o prazer das notícias do mundo, frescas pela manhã, e ganhem curiosidade pelo que vai acontecendo aos seus contemporâneos, próximos e longínquos, naquele mesmo dia ou no dia anterior.

Não partilho a repugnância de Augusto M. Seabra (v. PÚBLICO de 3/12) pela actividade promocional e concorrencial levada a cabo por "jornais de referência": Todos sabemos que o reduzido número de leitores, sobretudo para jornais de referência, tem, em Portugal, causas que esses jornais não podem por si só resolver em tempo útil e que os "benefícios colaterais" (aumento de vendas), embora colaterais, são benefícios e não "danos", se significarem a viabilidade do jornal e a consequente sustentação de um padrão. Prefiro um bom jornal com um faqueiro do que um jornal sem faqueiro que transija com a qualidade intrínseca do seu conteúdo, para agarrar mais leitores. E, quer se goste quer não, estamos no mercado. Quanto ao perigo da perturbação que "produtos externos" podem trazer à percepção do produto principal (o jornal e seus conteúdos informativos), confundindo-os, caro Augusto, não vejo como numa sociedade em que a linguagem da publicidade é tão imediata e naturalmente entendida, alguém, mesmo por mais "analfabeto", possa alguma vez confundir a identidade do produto promovido com a do "subproduto" promocional, seja ele um faqueiro, um DVD ou até um livro. Mas, para não maçar agora os leitores, podemos continuar esta conversa sobre um aprazado café.

Bem-vinda, assim, a segunda série da Mil Folhas. Não comento a escolha: é uma boa lista entre mil outras possíveis. Mas registo a preferência quase exclusiva por romances. Ora, ainda que sem sair da "literatura absoluta" (como Roberto Calasso designa a que encontra em si mesma o seu fundamento e se basta a si própria), a poesia poderia, aqui ou ali, aparecer.

E, saindo da literatura mas ficando ainda na melhor prosa, porque não as memórias, a história, as viagens, o ensaio político? A melhor prosa hoje, mais do que nos romances, porventura é aí que está. Nas várias línguas em que são escritas estas obras da Mil Folhas e nalguns casos também na língua portuguesa. Não sei quem disse mesmo que, se Shakespeare escrevesse hoje, escreveria para a televisão.

Qualquer destes géneros proporciona paragem e concentração próprias do acto imóvel e solitário de ler. Qualquer destes géneros nos compensa de uma outra leitura descontínua, intermitente, sincopada, que praticamos de manhã à noite, lendo "fórmulas breves": signos, mensagens, sinais luminosos, ecrãs de computador e, claro, notícias no jornal.

Mas a verdade é que só a "literatura absoluta" nos resgata do verbo conjugado no presente que lemos nos jornais. Ela - como, aliás, o cinema e a arte em geral - é expressão da nossa liberdade de, ao conjugarmos os verbos no futuro, no conjuntivo ou no condicional, concebermos um mundo alternativo e de (ainda Steiner) "recusarmos a inevitabilidade bruta ou o despotismo do facto". É mesmo "sob a pressão das penas e do júbilo, do amor e do ódio dos humanos" - que os jornais nos servem de manhã - "que a língua se torna literatura".

E a propósito, uma intimação: Feliz Ano Novo!

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