AS CULTURAS DO 25 DE ABRIL

29-06-2004
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AS CULTURAS DO 25 DE ABRIL

Sábado, 05 de Junho de 2004

%Eduardo Prado Coelho

O título é "Ensaio Geral - Passado e Futuro do 25 de Abril", e a expressão "ensaio em geral", no seu sentido teatral, significa que a estreia daquilo a que se chama "o 25 de Abril" está ainda por realizar. O que remete claramente para a conclusão do estudo de Francisco Louçã: "A principal herança dos trinta anos desde Abril de 1974 é a exigência de recomeçar de novo." O livro é um conjunto de ensaios, alguns certamente problemáticos e discutíveis, escritos por pessoas que se situam na área do Bloco de Esquerda, isto pelo menos em relação àquelas cujos nomes conheço: Ana Drago, Francisco Louçã, João Teixeira Lopes, José Manuel Pureza, Luís Fazenda, Miguel Portas; mas também Carlos Santos, Helena Pinto, Jorge Costa, José Casimiro, Maria José Magalhães.

Fernando Rosas ocupa-se de um tema amplo e controverso como "A revolução e a democracia", Luís Fazenda considera "As voltas do PREC", Miguel Portas e José Manuel Pureza tratam "Do atlantismo ao europeísmo de esquerda", Carlos Santos e José Casimiro ocupam-se dos movimentos sociais e Ana Drago e Jorge Costa, Francisco Louça e Fernando Rosas voltam-se para o futuro. Maria José Magalhães e Helena Pinto escrevem um texto intitulado "Olhei à minha volta reparei". Neste texto sobre a situação das mulheres portuguesas o balanço é relativamente pessimista: "Embora aparentemente exista um consenso alargado em torno dos direitos já adquiridos e sobre as questões da igualdade entre mulheres e homens, surgem hoje ideias e propostas que na prática significam um enorme retrocesso ao nível das atitudes, dos comportamentos individuais, mas também colectivos, ao mesmo tempo que o Estado, ao seguir um caminho de desresponsabilização e de corte nos direitos sociais, mais não faz que incentivar alterações em sentido negativo." É neste capítulo que encontramos a secção dedicada à despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Sobre o tema predomina talvez um optimismo excessivo: "a adesão popular inequívoca à petição por um novo referendo" será mesmo tão forte?

Um texto particularmente interessante, e com grandes qualidades de exposição e problematização, é o de Francisco Louçã, "Da modernização conservadora à razia liberal", onde se consideram três períodos: o que Louçã designa como "a ruptura" (e não "revolução"), entre 74 e 75; a normalização de tipo modernidade conservadora, entre 1976 e 2002 (incluindo, portanto, Cavaco Silva); e a fase de modernização liberal, de 2002 até à actualidade. Mas assinala algumas mudanças: as alterações demográficas em Portugal, onde passámos a ser o país europeu com menor taxa de natalidade, e onde a esperança de vida aumentou consideravelmente (de 60 para 73 anos entre os homens e de 66 para 79 anos nas mulheres). Em segundo, uma profunda alteração das oportunidades sociais. Em terceiro lugar, enorme transformação da estrutura social. A população agrícola passou de 43,6 por cento para 7 por cento: "Grande parte da população agrícola veio para as cidades, enquanto parte do emprego industrial se transferia para os serviços públicos e privados."

Em quarto lugar, modificou-se a relação dos cidadãos com a política. Daqui resulta um país simultaneamente moderno e atrasado, com grandes desigualdades sociais, onde predomina um populismo mediático que em muitos casos parece ter substituído o desejo de democracia. A questão que se coloca - e que um texto do sociólogo João Teixeira Lopes nos ajuda a colocar - é esta: que políticas culturais para um país assim? Ou ainda: em que medida as políticas culturais contribuíram para um país assim? Por isso o texto de Teixeira Lopes se intitula "Trinta anos de políticas culturais: a revolução inacabada e o país complexo".

A dificuldade em discutir este ensaio obviamente interessante reside na aceitação, ou não, dos pressupostos teóricos (que, em certos casos, são pressupostos ideológicos) que estão em jogo. Não ponho em causa que a cultura não é uma ideologia cicatrizante de consenso, mas que implica "conflito, comunicação, interacção e dominação" e que a política cultural se faz "de actos e discursos, mas também de silêncios e interditos". E aceito sem grandes reservas a caracterização das orientações da maior parte dos ministros e secretários de Estado da Cultura que tivemos.

Neste ponto gostaria de sublinhar que Teixeira Lopes tem palavras sobre Teresa Gouveia que me parecem muito justas: "Teresa Patrício Gouveia traçara as linhas do que viria a ser uma proposta que constituiria uma excepção neste curso da política cultural do Estado português, porque dotada de sistematicidade, recursos financeiros e humanos e inserção internacional." E é no mesmo espírito (que não exclui neste caso algum "fair play...) que Teixeira Lopes escreve: "Merece inegável destaque a acção do ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho não só porque conseguiu, no período inicial dos governos socialistas, uma aproximação nunca antes tentada ao 1 por cento do Orçamento Geral do Estado, como pelas apostas vincadas na internacionalização da arte portuguesa e no apoio à criação artística. Dir-se-ia mesmo que, pela primeira vez, existia um ministro da Cultura em clara sintonia perceptiva e política com uma parte substancial dos agentes culturais."

Já não aceito com tanta facilidade a distinção entre democracia cultural e democratização cultural. Veja-se uma afirmação de João Teixeira Lopes: "Perpassa a defesa da democratização cultural (facilitar socialmente o acesso às obras eruditas, numa lógica descendente, em que se impõem os cânones da divulgação institucional) e um silêncio, raramente quebrado, em favor da democracia cultural (aposta decidida na dignificação de todas as linguagens e formas de expressão cultural e na abertura dos reportórios e do campo de possíveis culturais, condição indispensável à efectiva liberdade de escolha."

Pergunto: todas as obras de qualidade são eruditas? A qualidade vem necessariamente de cima? Implica uma "lógica descendente"? Haverá uma qualidade que exceda a relação de forças sociais em estado de permanente conflito? Que é a democracia cultural? É apenas a possibilidade de que todos se possam exprimir, ou significa que o facto de uma obra ser a expressão de alguém é em si mesmo um valor? A questão central é esta: existem valores estéticos que não sejam resultado de uma confrontação?

Porque anteriormente João Teixeira Lopes escrevera que "a única contrapartida que se deve pedir à criação artística é a sua qualidade, sempre polémica e com direito ao erro e à experimentação. A formação de públicos, pedra angular da democracia cultural, deve existir como política autónoma, em estreita relação com os contextos de socialização (escola, local de trabalho, associações) e os espaços públicos". Mas que significa "qualidade" à luz do que foi citado por mim anteriormente? Porque "qualidade" exige uma tábua de valores que permitam distinguir a qualidade da não-qualidade. E o mesmo em relação à formação de públicos. Ou a democracia cultural aceita horizontalmente que todos os públicos são legítimos nos seus gostos, ou acha que é preciso formar públicos e isso entra já numa lógica descendente. E a relação com a escola também. Nenhum lugar vai mais longe numa lógica descendente do que a escola. Só que a lógica descendente pode ser a de uma aprendizagem da pluralidade, tanto como a lógica ascendente é em muitos casos uma afirmação do dogmatismo espontâneo.

AS CULTURAS DO 25 DE ABRIL

Sábado, 05 de Junho de 2004

%Eduardo Prado Coelho

O título é "Ensaio Geral - Passado e Futuro do 25 de Abril", e a expressão "ensaio em geral", no seu sentido teatral, significa que a estreia daquilo a que se chama "o 25 de Abril" está ainda por realizar. O que remete claramente para a conclusão do estudo de Francisco Louçã: "A principal herança dos trinta anos desde Abril de 1974 é a exigência de recomeçar de novo." O livro é um conjunto de ensaios, alguns certamente problemáticos e discutíveis, escritos por pessoas que se situam na área do Bloco de Esquerda, isto pelo menos em relação àquelas cujos nomes conheço: Ana Drago, Francisco Louçã, João Teixeira Lopes, José Manuel Pureza, Luís Fazenda, Miguel Portas; mas também Carlos Santos, Helena Pinto, Jorge Costa, José Casimiro, Maria José Magalhães.

Fernando Rosas ocupa-se de um tema amplo e controverso como "A revolução e a democracia", Luís Fazenda considera "As voltas do PREC", Miguel Portas e José Manuel Pureza tratam "Do atlantismo ao europeísmo de esquerda", Carlos Santos e José Casimiro ocupam-se dos movimentos sociais e Ana Drago e Jorge Costa, Francisco Louça e Fernando Rosas voltam-se para o futuro. Maria José Magalhães e Helena Pinto escrevem um texto intitulado "Olhei à minha volta reparei". Neste texto sobre a situação das mulheres portuguesas o balanço é relativamente pessimista: "Embora aparentemente exista um consenso alargado em torno dos direitos já adquiridos e sobre as questões da igualdade entre mulheres e homens, surgem hoje ideias e propostas que na prática significam um enorme retrocesso ao nível das atitudes, dos comportamentos individuais, mas também colectivos, ao mesmo tempo que o Estado, ao seguir um caminho de desresponsabilização e de corte nos direitos sociais, mais não faz que incentivar alterações em sentido negativo." É neste capítulo que encontramos a secção dedicada à despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Sobre o tema predomina talvez um optimismo excessivo: "a adesão popular inequívoca à petição por um novo referendo" será mesmo tão forte?

Um texto particularmente interessante, e com grandes qualidades de exposição e problematização, é o de Francisco Louçã, "Da modernização conservadora à razia liberal", onde se consideram três períodos: o que Louçã designa como "a ruptura" (e não "revolução"), entre 74 e 75; a normalização de tipo modernidade conservadora, entre 1976 e 2002 (incluindo, portanto, Cavaco Silva); e a fase de modernização liberal, de 2002 até à actualidade. Mas assinala algumas mudanças: as alterações demográficas em Portugal, onde passámos a ser o país europeu com menor taxa de natalidade, e onde a esperança de vida aumentou consideravelmente (de 60 para 73 anos entre os homens e de 66 para 79 anos nas mulheres). Em segundo, uma profunda alteração das oportunidades sociais. Em terceiro lugar, enorme transformação da estrutura social. A população agrícola passou de 43,6 por cento para 7 por cento: "Grande parte da população agrícola veio para as cidades, enquanto parte do emprego industrial se transferia para os serviços públicos e privados."

Em quarto lugar, modificou-se a relação dos cidadãos com a política. Daqui resulta um país simultaneamente moderno e atrasado, com grandes desigualdades sociais, onde predomina um populismo mediático que em muitos casos parece ter substituído o desejo de democracia. A questão que se coloca - e que um texto do sociólogo João Teixeira Lopes nos ajuda a colocar - é esta: que políticas culturais para um país assim? Ou ainda: em que medida as políticas culturais contribuíram para um país assim? Por isso o texto de Teixeira Lopes se intitula "Trinta anos de políticas culturais: a revolução inacabada e o país complexo".

A dificuldade em discutir este ensaio obviamente interessante reside na aceitação, ou não, dos pressupostos teóricos (que, em certos casos, são pressupostos ideológicos) que estão em jogo. Não ponho em causa que a cultura não é uma ideologia cicatrizante de consenso, mas que implica "conflito, comunicação, interacção e dominação" e que a política cultural se faz "de actos e discursos, mas também de silêncios e interditos". E aceito sem grandes reservas a caracterização das orientações da maior parte dos ministros e secretários de Estado da Cultura que tivemos.

Neste ponto gostaria de sublinhar que Teixeira Lopes tem palavras sobre Teresa Gouveia que me parecem muito justas: "Teresa Patrício Gouveia traçara as linhas do que viria a ser uma proposta que constituiria uma excepção neste curso da política cultural do Estado português, porque dotada de sistematicidade, recursos financeiros e humanos e inserção internacional." E é no mesmo espírito (que não exclui neste caso algum "fair play...) que Teixeira Lopes escreve: "Merece inegável destaque a acção do ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho não só porque conseguiu, no período inicial dos governos socialistas, uma aproximação nunca antes tentada ao 1 por cento do Orçamento Geral do Estado, como pelas apostas vincadas na internacionalização da arte portuguesa e no apoio à criação artística. Dir-se-ia mesmo que, pela primeira vez, existia um ministro da Cultura em clara sintonia perceptiva e política com uma parte substancial dos agentes culturais."

Já não aceito com tanta facilidade a distinção entre democracia cultural e democratização cultural. Veja-se uma afirmação de João Teixeira Lopes: "Perpassa a defesa da democratização cultural (facilitar socialmente o acesso às obras eruditas, numa lógica descendente, em que se impõem os cânones da divulgação institucional) e um silêncio, raramente quebrado, em favor da democracia cultural (aposta decidida na dignificação de todas as linguagens e formas de expressão cultural e na abertura dos reportórios e do campo de possíveis culturais, condição indispensável à efectiva liberdade de escolha."

Pergunto: todas as obras de qualidade são eruditas? A qualidade vem necessariamente de cima? Implica uma "lógica descendente"? Haverá uma qualidade que exceda a relação de forças sociais em estado de permanente conflito? Que é a democracia cultural? É apenas a possibilidade de que todos se possam exprimir, ou significa que o facto de uma obra ser a expressão de alguém é em si mesmo um valor? A questão central é esta: existem valores estéticos que não sejam resultado de uma confrontação?

Porque anteriormente João Teixeira Lopes escrevera que "a única contrapartida que se deve pedir à criação artística é a sua qualidade, sempre polémica e com direito ao erro e à experimentação. A formação de públicos, pedra angular da democracia cultural, deve existir como política autónoma, em estreita relação com os contextos de socialização (escola, local de trabalho, associações) e os espaços públicos". Mas que significa "qualidade" à luz do que foi citado por mim anteriormente? Porque "qualidade" exige uma tábua de valores que permitam distinguir a qualidade da não-qualidade. E o mesmo em relação à formação de públicos. Ou a democracia cultural aceita horizontalmente que todos os públicos são legítimos nos seus gostos, ou acha que é preciso formar públicos e isso entra já numa lógica descendente. E a relação com a escola também. Nenhum lugar vai mais longe numa lógica descendente do que a escola. Só que a lógica descendente pode ser a de uma aprendizagem da pluralidade, tanto como a lógica ascendente é em muitos casos uma afirmação do dogmatismo espontâneo.

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