Os jovens gostam de frequentar a discoteca do vigário?

03-08-2004
marcar artigo

Os Jovens Gostam de Frequentar a Discoteca do Vigário?

Domingo, 01 de Agosto de 2004 %Paulo Moura Quem sente simpatia por estes quatro jovens bué da malucos aos saltos num sofá pendurado no tecto? Música aos berros. Os três rapazes e a rapariga estão a dançar num frenesim, embora não levantem os rabos do assento. Abanam os capacetes e empurram-se uns contra os outros desarvoradamente. Moche de sofá. O da direita, de t-shirt verde, barba por fazer e olhos alucinados grita: "Eh pá!" A sua voz não se ouve, por causa da música infernal, por isso aparecem legendas no ecrã. Consegue chamar, por um ínfimo momento, a atenção do segundo a contar da esquerda, de calças aos quadrados, peúgas amarelas, guedelha pelos ombros, barba daninha e lata de cerveja na mão. A música parece cada vez mais alto. O primeiro grita outra vez, a gesticular: "Vai mudar o som!" O da guedelha faz uma expressão de desespero e horror, parecendo ainda mais demente sem parar de dançar aos coices e explode: "Eh pá sou sempre eu!" E volta-se para a rapariga num esgar de fúria e súplica: "Marta!" Ela tem o cabelo todo no ar, semi-apanhado em repuxo, pulseiras e brincos cor-de-rosa, um blusão preto esfarrapado e ténis brancos. Continua a espernear e a sacudir-se, a dar murros no ar, como se nada fosse. "Vai lá mudar o som pá... vai lá.", insiste o das calças aos quadrados, quase a chorar, mas ela não quer saber, ninguém quer saber, o próprio guedelhudo das calças aos quadrados também não quer saber, e atira a lata de cerveja pelo ar, libertando os braços para o boçal estrebucho colectivo. Estão fartos da música mas ninguém vai mudar, por indolência, por inércia, porque o sofá está demasiado alto, e continuam a curtir, porque música é música, ou melhor, nem é música, é um "som", e mais vale ouvir sempre o mesmo do que ter a trabalheira de ir mudar o disco. E mudar para quê, se os "sons" que o pessoal curte são todos iguais, e ninguém se queixa, ou sequer repara, já que o "som" não é mais do que um pretexto para abanar o capacete e ser bué da maluco. Este é um anúncio televisivo em que se prometia um lugar especial para quatro pessoas no Rock in Rio a quem enviar um SMS e ganhar o concurso. "O best seat Vodafone. Suspenso mesmo em frente ao palco". Quem sente identificação com esta imagem de jovens demasiado preguiçosos para mudarem o disco que estão fartos de ouvir? Quem acha graça a piadas feitas à sua própria custa? É imposssível não reparar que muitas campanhas publicitárias dirigidas aos jovens se baseiam nestas imagens pouco edificantes dos próprios destinatários das mensagens. Estão todos numa festa à beira do coma alcoólico, em casa dos pais que foram passar o fim-de-semana fora, num atoleiro de restos de pizza e cerveja entornada, e é preciso esconder os amigos atrás dos sofás quando os pais ligam para o telemóvel de terceira geração, para que não se apercebam do "submundo" em que os filhos vivem. Quem sente o apelo deste "submundo" feito de festas, discotecas, álcool, mensagens SMS, roupas "cool", fofocas "dahh", namoros "zzzt"? Quem se revê no rapaz a tentar comer com as mãos em ligaduras, por ter digitado tantas mensagens SMS? Ou na rapariga aflita quando o pai entra no quarto com uma refeição numa bandeja... "Pai, vou já desligar". E ele, com a cumplicidade do generoso tarifário da PT: "Não te preocupes. Vê lá é se comes, porque já estás há dez horas ao telefone". "Nos anúncios da Vodafone os jovens estão sempre em festas", diz-nos Miguel Gonçalves, Director de Contas da agência de publicidade TBWA/EPG, que faz campanhas da TMN. "A vida não é assim. Sabemos que a maior parte das vezes os jovens estão em casa, sem poderem sair, ou sem dinheiro para irem a lado nenhum, a ver aqueles anúncios e a imaginar uma vida que não têm". Paulo Pinto, art director da BBDO, a agência que tem a conta da Optimus, quer acreditar que os jovens se identificam cada vez menos com esse ideal de vida a 200 à hora, só festas, só álcool. "Os jovens estão cada vez mais ligados à Natureza, ao mar, ao surf. Estão outra vez a dar valor à família, até já saem menos à noite. Têm mais consciência do mundo que os rodeia, e de que é preciso proteger essse mundo. É fácil fazer piadinhas em publicidade, mas isso resulta cada vez menos". Do lado da Vodafone, a ideia é, explicam-nos, retratar a vida real dos jovens, situações do seu dia-a-dia. "Nos nossos anúncios aparecem pessoas normais em situações normais", diz-nos, ao telefone, Luísa Pestana. (A Vodafone proibiu a agência que lhes faz a publicidade, a J. Walter Thompson, de nos conceder qualquer entrevista. A empresa preferiu designar uma representante para falar à reportagem da PÚBLICA, apenas por telefone: Luísa Pestana, Directora de Comunicação Institucional, Apoio à Gestão e Responsabilidade Social). "Por exemplo, para apresentarmos os nossos novos serviços de telemóveis com MP3, com jogos, temos um anúncio com jovens todos a dançar na praia...", diz a representante da Vodafone. Normalmente, nas praias, as pessoas não estão todas a dançar - dizemos, para pôr em questão a ideia das "pessoas normais em situações normais". Silêncio do outro lado da linha. O telemóvel tornou-se no objecto mais importante da nossa época. É o triunfo da liberdade individual. Ou pelo menos da sua possibilidade. É um instrumento de poder. Poder estar em qualquer lugar em contacto com toda a gente, poder fazer tudo em qualquer altura em qualquer sítio, uma vez que telefonar é apenas uma, quiçá a menos importante, das muitas funções dessas geringonças minúsculas e mágicas. É a versão moderna de um canivete suíço, como escreveu a especialista em publicidade Maria João Freitas. "Com o telemóvel, o corpo passou a ser a nossa verdadeira morada". Diríamos mesmo que, enquanto extensão do nosso corpo e reflexo da nossa própria personalidade já ultrapassou o automóvel. Ou pelo menos prepara-se para o fazer, a velocidade alucinante. O telemóvel está ligado a um novo estilo de vida. Com toda a legitimidade, já que é ele que o permite. As mensagens SMS, a transmissão de imagens, o acesso permanente à Internet, os "toques" de cumprimento, as listas de números e endereços, as agendas, os alarmes, as funções de gravação de voz, de filmagem de música, tudo isso mudou a vida das pessoas. Por isso o telemóvel é, para além de tudo o que faz, portador de uma linguagem implícita: diz muito sobre quem o possui. "Eu digo-lhe o que o telemóvel vai ser: vai ser o instrumento com que controlamos tudo nas nossas vidas, o único de que precisamos", prevê Filipa Soares, Directora de Planeamento Estratégico da agência TBWA/EPG, que faz publicidade da TMN. "Com este gesto de ligar a televisão com o comando, quando chegamos a casa, vamos controlar tudo à nossa volta. E vamos fazê-lo com os telemóveis". O telemóvel é um espelho do que somos, do nosso estatuto social, cultural, etário, etc, mas também do que seremos. No seu minúsculo ecrã, cada vez mais nítido, surgem os contornos da sociedade das próximas décadas. É um espelho do futuro. Vai-nos permitir ser cada vez mais egoístas, já que poderemos fazer tudo sem a ajuda de ninguém? Ou cada vez mais abertos ao mundo à nossa volta, já que nos faculta o acesso rápido e fácil a uma quantidade de informação sem precedentes? Promoverá o individualismo radical ou a solidariedade sem limites, a descoberta de um mundo comunicativo e fraterno? Os anúncios às operadoras de telemóvel, dirigidos essencialmente aos jovens, deveriam dar-nos algumas pistas sobre estas questões. Os publicitários conhecem melhor do que ninguém os seus "targets", os seus públicos-alvo. Não lhes são permitidas efabulações nem mitos, nem sequer dúvidas. Trata-se de vender, e os erros podem sair muito caros. Nesta ordem de ideias, o que vemos nos anúncios de telemóveis para os jovens é um pouco o mundo de amanhã. E se isto é verdade, a imagem dos quatro pacholas a mochar no sofá pendurado no tecto, "eh pá, sou sempre eu..." é, no mínimo, preocupante. "Nos nossos anúncios, o objectivo é mostrar as características do produto que temos. Mais nada", explica-nos Miguel Gonçalves, Director de Contas da TBWA/EPG, a agência da TMN. "Apresentamos os benefícios do produto para a vida das pessoas, não uma imagem com que elas se identifiquem, e que fique colada à marca". Sérgio Santos, do departamento de Planeamento Estratégico da mesma agência, acrescenta: "O que fazemos é falar do produto na linguagem de quem compra". Ou seja, é uma questão de linguagem, não de tema. Não se pretende influenciar a vida das pessoas, apenas dar-lhes o que necessitam para a vida que têm. É a abordagem neutral. Ou que, pelo menos, assim quer parecer. "Não criamos necessidades nas pessoas. Quando muito despertamos necessidades latentes", acrescenta Sérgio Santos. Miguel Gonçalves explica: "Nos anúncios, temos sempre cenas da vida real. Incluímos os nossos produtos nessa vida real, para a tornar mais fácil. Não para criar uma vida artificial. Os telemóveis de 'terceira geração' podem ser úteis às pessoas na praia. Mas ninguém vai à praia porque há telemóveis de 'terceira geração'". Nos anúncios dirigidos aos jovens há muitas vezes a tentação de criar cenários, sugerir estilos de vida, por uma simples razão: é que os jovens são, por natureza, "early adopters", explica Sérgio Santos. Ou seja: "são mais predispostos a experimentar produtos novos, tecnologias novas". Ora esses produtos, precisamente porque são novos, carecem de um certo cenário à sua volta, que explique ao comprador a tal "necessidade latente" que ele tem mas não sabe que tem. Mas "os jovens não são estúpidos", garante Sérgio. São mesmo "cínicos". Têm uma "facilidade maior do que outros grupos para desmontar esquemas de marketing", diz Miguel. pela sua natural desconfiança e também porque estão habituados a aceder rapida e eficazmente a informação, principalmente na internet. Podem confirmar em minutos se determinada informação sobre um produto é ou não verdadeira. Muitos dos actuais anúncios para jovens correspondem ao que os ingleses chamam "vicars disco", diz Sérgio. "Falam numa linguagem exageradamente 'jovem', o que soa ridículo aos ouvidos dos jovens". É como a discoteca que o vigário montou na paróquia para que os jovens se divirtam de forma decente, evitando os maus caminhos. Os criativos da TBWA/EPG para a TMN fogem portanto desta estratégia "discoteca do vigário", por acharem que os jovens a desmontam facilmente. Resultado? A TMN está a perder influência entre os consumidores jovens, em benefício da Vodafone. "É um problema que temos", admite Miguel Gonçalves. "A marca pediu-nos para entrarmos mais no universo dos jovens, para fazermos anúncios com mais 'onda'. Nesta próxima campanha que estamos a preparar, vai haver mais disso. Raparigas lindas e rapazes musculados na praia...", diz o Director de Contas, claramente contrariado. "É normal as campanhas mudarem, adaptarem-se às mudanças dos próprios públicos, corrigirem a direcção, quando se vê que há outras que estão a resultar melhor", põe água na fervura Filipa Soares, Directora de Planeamento Estratégico. Sérgio Santos, que conhece todas as estratégias e os respectivos nomes: "Há alturas em que é preciso dizer 'nós também temos esse produto, ou também sabemos fazer isso'. Chama-se 'Me too'". Porque se sentem os jovens atraídos por esse mundo fictício de palavras e imagens de loucura e rebeldia, ainda que inofensivas? Por outras palavras, porque gostam os jovens de frequentar a "discoteca do vigário"? Isabel Dias, licenciada em Relações Públicas e Publicidade a fazer uma pós-graduação sobre os anúncios da Optimus aos festivais de Verão, diz que há uma lacuna na vida dos jovens. "Eles gostam de aventura, de grandes causas, de sensações fortes, de coisas com sentido. Mas não há oportunidades, na vida quotidiana, de manifestar esses impulsos. Existe um vazio. Nas poucas oportunidades que há, as pessoas aparecem, empenham-se. No dia a dia, não conseguimos mostrar tudo aquilo que somos". A publicidade proporciona-nos a ilusão de um mundo, pelo menos, mais animado. "As marcas vêem que podem desempenhar essa função e aproveitam-no. Dão às pessoas o que elas precisam". E tudo o que podem dar é a "discoteca do vigário". Rebeldia autêntica, ideias sobre um mundo melhor, os jovens não aceitariam, não porque não precisem, mas porque não reconhecem às marcas de telemóveis competência para lhes vender tais "produtos". Na melhor das hipóteses, "as pessoas relacionam-se com uma marca como com um amigo, não como um partido ou uma religião". Nos seus momentos mais edificantes, as campanhas da Vodafone e da TMN parecem explorar acima de tudo essa ideia de afecto, de amizade. "É uma marca preocupada com as pessoas", diz Luísa Pestana da Vodafone. "Preocupa-se que estejam bem, onde quer que estejam". "Vodafone - How are you?" "A coisa mais importante do mundo é o nosso grupo de amigos", diz Filipa Soares, da TBWA/EPG (TMN). E o seu colega Sérgio Santos diz-nos que um importante "insight criativo" é a ideia de que o telemóvel é o lugar onde guardamos os nossos amigos, as pessoas de quem gostamos. "TMN, mais perto do que é importante". As campanhas da Optimus tentam ir um pouco mais longe. "Segue o que sentes". No anúncio do festival do Meco, da autoria da agência BBDO, um jovem aproxima-se de um camião que descarrega terra, e põe-se, numa expressão de arrebatamento, a aspirar a poeirada que se solta no ar. "Saudades do Meco?" é a frase do spot. Há aqui uma rebeldia diferente da que se experimenta a dançar na praia. Há a ideia de que se ama incondicionalmente o festival do Meco, e que isso implica sofrer, ir contra tudo e todos, se for preciso. E se muitos criticam o evento por causa do pó, pois vamos respirá-lo a plenos pulmões. Amar a sério não é amar apesar dos defeitos. É amar os próprios defeitos. No anúncio da "terceira geração" de telemóveis, muitos jovens começam a receber imagens de uma enorme baleia numa praia, em perigo de vida. A imagem passa de telefone em telefone e uma multidão de pessoas corre para a praia para salvar a baleia. Os criativos da BBDO que conceberam o anúncio, Paulo Pinto e Pedro Lima, desvalorizam a ideia de um conteúdo social e político. "Não foi nada assim tão lírico", diz Pureza Morais Cabral, Directora de Contas da agência. "O que se pretendeu foi dramatizar a força das pessoas. Não a força física mas a capacidade de se juntarem e trabalharem em prol de um objectivo, criando uma corrente". A "Corrente" é o título do filme, cuja frase-chave é "A força da terceira geração". "A ideia, criada pela marca e a agência, que já nos tinha sido transmitida no briefing, era a de criar uma espécie de corrente de solidariedade, como já acontece com os emails, em que cada pessoa recebe a mensagem e reenvia para dez amigos. Ao fim de algum tempo, a ideia deu a volta ao mundo. Era essa ferramenta que queríamos mostrar", explica Pedro Lima, copywriter da BBDO. Paulo Pinto, art director, conta como, daqui, chegaram à ideia da baleia: "Tínhamos a estrutura do filme, só nos faltava a história. Pensámos: o que é que vai mexer com as pessoas? Então lembrámo-nos da tragédia do Prestige, como mobilizou tanta gente..." A baleia era o símbolo ideal de uma causa nobre. Porque é grande e frágil, está em perigo de extinção, é muito pesada, precisa de muita gente, para poder ser salva. Havia um orçamento generoso, e entregou-se o filme a uma produtora, a Krypton, e à empresa Dreamfactory, que construiu uma baleia artificial com 14 metros. Aqui, não há dúvidas: o telemóvel surge como símbolo de um mundo mais comunicativo, mais justo e mais fraterno. A questão é: a ideia é apelativa? O anúncio resultou? A BBDO e a Optimus ainda não têm dados concretos. Sabem que o anúncio foi um sucesso de notoriedade e de popularidade nas revistas de publicidade. Mas as vendas da Optimus continuam muito aquém das das outras operadoras. "Uma das razões por que pudemos fazer este anúncio foi porque a terceira geração é um produto que as pessoas ainda não estão a comprar, mas apenas a tomar contacto com ele. Nesta fase, podemos ser mais criativos", explica Ana Amorim, Directora de Contas da BBDO. "Um anúncio que é uma piada, pode ter um efeito imediato", diz Pedro Lima. "Uma pessoa ri-se, mas esquece. 'A Corrente' pretende ser mais do que isso. Pretende deixar marcas". OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

Quatro novos campeões portugueses

Atenas 2004 Os desenhos de Calatrava

Proezas e fracassos nas Olimpíadas

De onde é Viriato?

Excertos de textos antigos sobre Viriato

Os jovens gostam de frequentar a discoteca do vigário?

Teresa Caeiro, "Girl" do CDS, secretária do Estado

Rui Ramos:A crise política não passou de uma carga de energia no sistema

A política à distância

Arménia

O Índex

Estilo de vida contribui para a demência

Consumo Perigo, há crianças na água

Cemitério de gelados

Salada de sapateira

CARTAS DA MAYA

Cartas da Maya

Os Jovens Gostam de Frequentar a Discoteca do Vigário?

Domingo, 01 de Agosto de 2004 %Paulo Moura Quem sente simpatia por estes quatro jovens bué da malucos aos saltos num sofá pendurado no tecto? Música aos berros. Os três rapazes e a rapariga estão a dançar num frenesim, embora não levantem os rabos do assento. Abanam os capacetes e empurram-se uns contra os outros desarvoradamente. Moche de sofá. O da direita, de t-shirt verde, barba por fazer e olhos alucinados grita: "Eh pá!" A sua voz não se ouve, por causa da música infernal, por isso aparecem legendas no ecrã. Consegue chamar, por um ínfimo momento, a atenção do segundo a contar da esquerda, de calças aos quadrados, peúgas amarelas, guedelha pelos ombros, barba daninha e lata de cerveja na mão. A música parece cada vez mais alto. O primeiro grita outra vez, a gesticular: "Vai mudar o som!" O da guedelha faz uma expressão de desespero e horror, parecendo ainda mais demente sem parar de dançar aos coices e explode: "Eh pá sou sempre eu!" E volta-se para a rapariga num esgar de fúria e súplica: "Marta!" Ela tem o cabelo todo no ar, semi-apanhado em repuxo, pulseiras e brincos cor-de-rosa, um blusão preto esfarrapado e ténis brancos. Continua a espernear e a sacudir-se, a dar murros no ar, como se nada fosse. "Vai lá mudar o som pá... vai lá.", insiste o das calças aos quadrados, quase a chorar, mas ela não quer saber, ninguém quer saber, o próprio guedelhudo das calças aos quadrados também não quer saber, e atira a lata de cerveja pelo ar, libertando os braços para o boçal estrebucho colectivo. Estão fartos da música mas ninguém vai mudar, por indolência, por inércia, porque o sofá está demasiado alto, e continuam a curtir, porque música é música, ou melhor, nem é música, é um "som", e mais vale ouvir sempre o mesmo do que ter a trabalheira de ir mudar o disco. E mudar para quê, se os "sons" que o pessoal curte são todos iguais, e ninguém se queixa, ou sequer repara, já que o "som" não é mais do que um pretexto para abanar o capacete e ser bué da maluco. Este é um anúncio televisivo em que se prometia um lugar especial para quatro pessoas no Rock in Rio a quem enviar um SMS e ganhar o concurso. "O best seat Vodafone. Suspenso mesmo em frente ao palco". Quem sente identificação com esta imagem de jovens demasiado preguiçosos para mudarem o disco que estão fartos de ouvir? Quem acha graça a piadas feitas à sua própria custa? É imposssível não reparar que muitas campanhas publicitárias dirigidas aos jovens se baseiam nestas imagens pouco edificantes dos próprios destinatários das mensagens. Estão todos numa festa à beira do coma alcoólico, em casa dos pais que foram passar o fim-de-semana fora, num atoleiro de restos de pizza e cerveja entornada, e é preciso esconder os amigos atrás dos sofás quando os pais ligam para o telemóvel de terceira geração, para que não se apercebam do "submundo" em que os filhos vivem. Quem sente o apelo deste "submundo" feito de festas, discotecas, álcool, mensagens SMS, roupas "cool", fofocas "dahh", namoros "zzzt"? Quem se revê no rapaz a tentar comer com as mãos em ligaduras, por ter digitado tantas mensagens SMS? Ou na rapariga aflita quando o pai entra no quarto com uma refeição numa bandeja... "Pai, vou já desligar". E ele, com a cumplicidade do generoso tarifário da PT: "Não te preocupes. Vê lá é se comes, porque já estás há dez horas ao telefone". "Nos anúncios da Vodafone os jovens estão sempre em festas", diz-nos Miguel Gonçalves, Director de Contas da agência de publicidade TBWA/EPG, que faz campanhas da TMN. "A vida não é assim. Sabemos que a maior parte das vezes os jovens estão em casa, sem poderem sair, ou sem dinheiro para irem a lado nenhum, a ver aqueles anúncios e a imaginar uma vida que não têm". Paulo Pinto, art director da BBDO, a agência que tem a conta da Optimus, quer acreditar que os jovens se identificam cada vez menos com esse ideal de vida a 200 à hora, só festas, só álcool. "Os jovens estão cada vez mais ligados à Natureza, ao mar, ao surf. Estão outra vez a dar valor à família, até já saem menos à noite. Têm mais consciência do mundo que os rodeia, e de que é preciso proteger essse mundo. É fácil fazer piadinhas em publicidade, mas isso resulta cada vez menos". Do lado da Vodafone, a ideia é, explicam-nos, retratar a vida real dos jovens, situações do seu dia-a-dia. "Nos nossos anúncios aparecem pessoas normais em situações normais", diz-nos, ao telefone, Luísa Pestana. (A Vodafone proibiu a agência que lhes faz a publicidade, a J. Walter Thompson, de nos conceder qualquer entrevista. A empresa preferiu designar uma representante para falar à reportagem da PÚBLICA, apenas por telefone: Luísa Pestana, Directora de Comunicação Institucional, Apoio à Gestão e Responsabilidade Social). "Por exemplo, para apresentarmos os nossos novos serviços de telemóveis com MP3, com jogos, temos um anúncio com jovens todos a dançar na praia...", diz a representante da Vodafone. Normalmente, nas praias, as pessoas não estão todas a dançar - dizemos, para pôr em questão a ideia das "pessoas normais em situações normais". Silêncio do outro lado da linha. O telemóvel tornou-se no objecto mais importante da nossa época. É o triunfo da liberdade individual. Ou pelo menos da sua possibilidade. É um instrumento de poder. Poder estar em qualquer lugar em contacto com toda a gente, poder fazer tudo em qualquer altura em qualquer sítio, uma vez que telefonar é apenas uma, quiçá a menos importante, das muitas funções dessas geringonças minúsculas e mágicas. É a versão moderna de um canivete suíço, como escreveu a especialista em publicidade Maria João Freitas. "Com o telemóvel, o corpo passou a ser a nossa verdadeira morada". Diríamos mesmo que, enquanto extensão do nosso corpo e reflexo da nossa própria personalidade já ultrapassou o automóvel. Ou pelo menos prepara-se para o fazer, a velocidade alucinante. O telemóvel está ligado a um novo estilo de vida. Com toda a legitimidade, já que é ele que o permite. As mensagens SMS, a transmissão de imagens, o acesso permanente à Internet, os "toques" de cumprimento, as listas de números e endereços, as agendas, os alarmes, as funções de gravação de voz, de filmagem de música, tudo isso mudou a vida das pessoas. Por isso o telemóvel é, para além de tudo o que faz, portador de uma linguagem implícita: diz muito sobre quem o possui. "Eu digo-lhe o que o telemóvel vai ser: vai ser o instrumento com que controlamos tudo nas nossas vidas, o único de que precisamos", prevê Filipa Soares, Directora de Planeamento Estratégico da agência TBWA/EPG, que faz publicidade da TMN. "Com este gesto de ligar a televisão com o comando, quando chegamos a casa, vamos controlar tudo à nossa volta. E vamos fazê-lo com os telemóveis". O telemóvel é um espelho do que somos, do nosso estatuto social, cultural, etário, etc, mas também do que seremos. No seu minúsculo ecrã, cada vez mais nítido, surgem os contornos da sociedade das próximas décadas. É um espelho do futuro. Vai-nos permitir ser cada vez mais egoístas, já que poderemos fazer tudo sem a ajuda de ninguém? Ou cada vez mais abertos ao mundo à nossa volta, já que nos faculta o acesso rápido e fácil a uma quantidade de informação sem precedentes? Promoverá o individualismo radical ou a solidariedade sem limites, a descoberta de um mundo comunicativo e fraterno? Os anúncios às operadoras de telemóvel, dirigidos essencialmente aos jovens, deveriam dar-nos algumas pistas sobre estas questões. Os publicitários conhecem melhor do que ninguém os seus "targets", os seus públicos-alvo. Não lhes são permitidas efabulações nem mitos, nem sequer dúvidas. Trata-se de vender, e os erros podem sair muito caros. Nesta ordem de ideias, o que vemos nos anúncios de telemóveis para os jovens é um pouco o mundo de amanhã. E se isto é verdade, a imagem dos quatro pacholas a mochar no sofá pendurado no tecto, "eh pá, sou sempre eu..." é, no mínimo, preocupante. "Nos nossos anúncios, o objectivo é mostrar as características do produto que temos. Mais nada", explica-nos Miguel Gonçalves, Director de Contas da TBWA/EPG, a agência da TMN. "Apresentamos os benefícios do produto para a vida das pessoas, não uma imagem com que elas se identifiquem, e que fique colada à marca". Sérgio Santos, do departamento de Planeamento Estratégico da mesma agência, acrescenta: "O que fazemos é falar do produto na linguagem de quem compra". Ou seja, é uma questão de linguagem, não de tema. Não se pretende influenciar a vida das pessoas, apenas dar-lhes o que necessitam para a vida que têm. É a abordagem neutral. Ou que, pelo menos, assim quer parecer. "Não criamos necessidades nas pessoas. Quando muito despertamos necessidades latentes", acrescenta Sérgio Santos. Miguel Gonçalves explica: "Nos anúncios, temos sempre cenas da vida real. Incluímos os nossos produtos nessa vida real, para a tornar mais fácil. Não para criar uma vida artificial. Os telemóveis de 'terceira geração' podem ser úteis às pessoas na praia. Mas ninguém vai à praia porque há telemóveis de 'terceira geração'". Nos anúncios dirigidos aos jovens há muitas vezes a tentação de criar cenários, sugerir estilos de vida, por uma simples razão: é que os jovens são, por natureza, "early adopters", explica Sérgio Santos. Ou seja: "são mais predispostos a experimentar produtos novos, tecnologias novas". Ora esses produtos, precisamente porque são novos, carecem de um certo cenário à sua volta, que explique ao comprador a tal "necessidade latente" que ele tem mas não sabe que tem. Mas "os jovens não são estúpidos", garante Sérgio. São mesmo "cínicos". Têm uma "facilidade maior do que outros grupos para desmontar esquemas de marketing", diz Miguel. pela sua natural desconfiança e também porque estão habituados a aceder rapida e eficazmente a informação, principalmente na internet. Podem confirmar em minutos se determinada informação sobre um produto é ou não verdadeira. Muitos dos actuais anúncios para jovens correspondem ao que os ingleses chamam "vicars disco", diz Sérgio. "Falam numa linguagem exageradamente 'jovem', o que soa ridículo aos ouvidos dos jovens". É como a discoteca que o vigário montou na paróquia para que os jovens se divirtam de forma decente, evitando os maus caminhos. Os criativos da TBWA/EPG para a TMN fogem portanto desta estratégia "discoteca do vigário", por acharem que os jovens a desmontam facilmente. Resultado? A TMN está a perder influência entre os consumidores jovens, em benefício da Vodafone. "É um problema que temos", admite Miguel Gonçalves. "A marca pediu-nos para entrarmos mais no universo dos jovens, para fazermos anúncios com mais 'onda'. Nesta próxima campanha que estamos a preparar, vai haver mais disso. Raparigas lindas e rapazes musculados na praia...", diz o Director de Contas, claramente contrariado. "É normal as campanhas mudarem, adaptarem-se às mudanças dos próprios públicos, corrigirem a direcção, quando se vê que há outras que estão a resultar melhor", põe água na fervura Filipa Soares, Directora de Planeamento Estratégico. Sérgio Santos, que conhece todas as estratégias e os respectivos nomes: "Há alturas em que é preciso dizer 'nós também temos esse produto, ou também sabemos fazer isso'. Chama-se 'Me too'". Porque se sentem os jovens atraídos por esse mundo fictício de palavras e imagens de loucura e rebeldia, ainda que inofensivas? Por outras palavras, porque gostam os jovens de frequentar a "discoteca do vigário"? Isabel Dias, licenciada em Relações Públicas e Publicidade a fazer uma pós-graduação sobre os anúncios da Optimus aos festivais de Verão, diz que há uma lacuna na vida dos jovens. "Eles gostam de aventura, de grandes causas, de sensações fortes, de coisas com sentido. Mas não há oportunidades, na vida quotidiana, de manifestar esses impulsos. Existe um vazio. Nas poucas oportunidades que há, as pessoas aparecem, empenham-se. No dia a dia, não conseguimos mostrar tudo aquilo que somos". A publicidade proporciona-nos a ilusão de um mundo, pelo menos, mais animado. "As marcas vêem que podem desempenhar essa função e aproveitam-no. Dão às pessoas o que elas precisam". E tudo o que podem dar é a "discoteca do vigário". Rebeldia autêntica, ideias sobre um mundo melhor, os jovens não aceitariam, não porque não precisem, mas porque não reconhecem às marcas de telemóveis competência para lhes vender tais "produtos". Na melhor das hipóteses, "as pessoas relacionam-se com uma marca como com um amigo, não como um partido ou uma religião". Nos seus momentos mais edificantes, as campanhas da Vodafone e da TMN parecem explorar acima de tudo essa ideia de afecto, de amizade. "É uma marca preocupada com as pessoas", diz Luísa Pestana da Vodafone. "Preocupa-se que estejam bem, onde quer que estejam". "Vodafone - How are you?" "A coisa mais importante do mundo é o nosso grupo de amigos", diz Filipa Soares, da TBWA/EPG (TMN). E o seu colega Sérgio Santos diz-nos que um importante "insight criativo" é a ideia de que o telemóvel é o lugar onde guardamos os nossos amigos, as pessoas de quem gostamos. "TMN, mais perto do que é importante". As campanhas da Optimus tentam ir um pouco mais longe. "Segue o que sentes". No anúncio do festival do Meco, da autoria da agência BBDO, um jovem aproxima-se de um camião que descarrega terra, e põe-se, numa expressão de arrebatamento, a aspirar a poeirada que se solta no ar. "Saudades do Meco?" é a frase do spot. Há aqui uma rebeldia diferente da que se experimenta a dançar na praia. Há a ideia de que se ama incondicionalmente o festival do Meco, e que isso implica sofrer, ir contra tudo e todos, se for preciso. E se muitos criticam o evento por causa do pó, pois vamos respirá-lo a plenos pulmões. Amar a sério não é amar apesar dos defeitos. É amar os próprios defeitos. No anúncio da "terceira geração" de telemóveis, muitos jovens começam a receber imagens de uma enorme baleia numa praia, em perigo de vida. A imagem passa de telefone em telefone e uma multidão de pessoas corre para a praia para salvar a baleia. Os criativos da BBDO que conceberam o anúncio, Paulo Pinto e Pedro Lima, desvalorizam a ideia de um conteúdo social e político. "Não foi nada assim tão lírico", diz Pureza Morais Cabral, Directora de Contas da agência. "O que se pretendeu foi dramatizar a força das pessoas. Não a força física mas a capacidade de se juntarem e trabalharem em prol de um objectivo, criando uma corrente". A "Corrente" é o título do filme, cuja frase-chave é "A força da terceira geração". "A ideia, criada pela marca e a agência, que já nos tinha sido transmitida no briefing, era a de criar uma espécie de corrente de solidariedade, como já acontece com os emails, em que cada pessoa recebe a mensagem e reenvia para dez amigos. Ao fim de algum tempo, a ideia deu a volta ao mundo. Era essa ferramenta que queríamos mostrar", explica Pedro Lima, copywriter da BBDO. Paulo Pinto, art director, conta como, daqui, chegaram à ideia da baleia: "Tínhamos a estrutura do filme, só nos faltava a história. Pensámos: o que é que vai mexer com as pessoas? Então lembrámo-nos da tragédia do Prestige, como mobilizou tanta gente..." A baleia era o símbolo ideal de uma causa nobre. Porque é grande e frágil, está em perigo de extinção, é muito pesada, precisa de muita gente, para poder ser salva. Havia um orçamento generoso, e entregou-se o filme a uma produtora, a Krypton, e à empresa Dreamfactory, que construiu uma baleia artificial com 14 metros. Aqui, não há dúvidas: o telemóvel surge como símbolo de um mundo mais comunicativo, mais justo e mais fraterno. A questão é: a ideia é apelativa? O anúncio resultou? A BBDO e a Optimus ainda não têm dados concretos. Sabem que o anúncio foi um sucesso de notoriedade e de popularidade nas revistas de publicidade. Mas as vendas da Optimus continuam muito aquém das das outras operadoras. "Uma das razões por que pudemos fazer este anúncio foi porque a terceira geração é um produto que as pessoas ainda não estão a comprar, mas apenas a tomar contacto com ele. Nesta fase, podemos ser mais criativos", explica Ana Amorim, Directora de Contas da BBDO. "Um anúncio que é uma piada, pode ter um efeito imediato", diz Pedro Lima. "Uma pessoa ri-se, mas esquece. 'A Corrente' pretende ser mais do que isso. Pretende deixar marcas". OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

Quatro novos campeões portugueses

Atenas 2004 Os desenhos de Calatrava

Proezas e fracassos nas Olimpíadas

De onde é Viriato?

Excertos de textos antigos sobre Viriato

Os jovens gostam de frequentar a discoteca do vigário?

Teresa Caeiro, "Girl" do CDS, secretária do Estado

Rui Ramos:A crise política não passou de uma carga de energia no sistema

A política à distância

Arménia

O Índex

Estilo de vida contribui para a demência

Consumo Perigo, há crianças na água

Cemitério de gelados

Salada de sapateira

CARTAS DA MAYA

Cartas da Maya

marcar artigo