Suplemento Pública

14-08-2004
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De Onde É Viriato?

Domingo, 01 de Agosto de 2004 %Clara Viana Viriato é lusitano? Sim. Viriato é português? Talvez não. O "aportuguesamento" do herói da Lusitânia não tem fundamento histórico. As investigações sobre a origem beirã deste guerreiro continuam em Portugal e em Espanha. Desde há alguns anos que historiadores têm vindo a perscrutar os textos antigos para tentar estabelecer o que de facto eles nos dizem sobre Viriato e a Lusitânia. Sendo tantas vezes a História as histórias que sobre ela contamos, estes regressos às fontes têm frequentemente o efeito de turbilhões. As fontes, aqui, são os textos de sábios gregos e romanos e que no que respeita a Viriato se constituem como exclusivos, ou seja, sem eles nada sobre o "nosso" pastor teria chegado até nós. Feita a precisão, revele-se o primeiro turbilhão: em lado nenhum, relacionada com Viriato, existe qualquer referência à serra da Estrela, o então chamado "mons Herminius", constata o historiador e arqueólogo Amílcar Guerra que, em conjunto com o também historiador e arqueólogo Carlos Fabião, ambos da Faculdade de Letras de Lisboa, tem liderado por cá a nova investigação sobre aquela figura histórica. Na Espanha o nome em destaque é o de Mauricio Pastor Munoz, professor da Universidade de Granada, que em Maio passado publicou o seu último trabalho (o quinto) sobre o caso - "Viriato, el héroe hispano que luchó por la libertad de su pueblo". Assim apresentado pelo autor: "Com dados e lendas reconstruí a biografia de Viriato. O que aqui se narra é, mais coisa menos coisa, o que hoje sabemos sobre o personagem." E o que "sabemos", como têm por certo Munoz, como Guerra e Fabião, é que na origem ninguém atribuiu a Viriato um "berço" nas terras inóspitas das Beiras, sejam elas a serra da Estrela ou Viseu ou outras. "Diz-se que é um homem das montanhas, que se refugia nas montanhas, mas não se especifica quais", esclarece Amílcar Guerra. É o que diz Diodoro, um autor do século III, que é a fonte para muitos dos pormenores da vida de Viriato. Tendo vivido muito depois do célebre lusitano terá ido buscar muitas das informações a Possidónio, um sírio que viveu no rescaldo das guerras lusitanas, travadas no século II a.C. Outro autor contemporâneo do conflito, que é também uma das fontes para esta época, é Políbio, particularmente conhecedor da ciência militar. Apiano, um alexandrino, do século II depois de Cristo, compõe este primeiro quarteto fundamental para apurar o que se passou nesses tempos em que o Ocidente era ainda território "bárbaro". A eles juntem-se os geógrafos Ptlomeu e Estrabão e teremos praticamente tudo aquilo que começou por ser relatado. Na verdade, foi já muitos séculos depois de Viriato e dos escritos que nos transmitiram a sua história que começou o seu "aportuguesamento" e a origem beirã lhe acabou colada. Não será por acaso, como notam Amílcar Guerra e Carlos Fabião, que este movimento tivesse começado no final do século XVI, precisamente a altura em que "a monarquia filipina almejava à recuperação, no concreto, do conceito político territorial de Hispânia", ou seja, à unificação da Península Ibérica sob a mesma coroa. É em alturas como aquela que são precisos heróis. O pioneiro da arqueologia em Portugal, André de Resende, recorreu aos lusitanos e a Viriato, apresentando-os como os antepassados dos portugueses (os "avós dos nossos avós", como mais tarde escreveria Aquilino Ribeiro) e dando forma precisamente à palavra "lusíada", até então inexistente. Por oposição à unificação desejada por Castela deitava-se mão a uma alegada especificidade ou identidade nacional que viria já de tempos remotos, antes mesmo de existirem Portugal ou Espanha, quando o espaço hoje ocupado pelos dois países ibéricos era a Hispânia cobiçada pelos romanos. "Historicamente não há uma fronteira com a Espanha", ressalva Amílcar Guerra, sublinhando as continuidades de cá para lá ou vice-versa, do Minho para a Galiza, da Beira Baixa para Cáceres, da raia portuguesa, "culturalmente um prolongamento da Andaluzia". É uma perspectiva que está longe de ser maioritária dos dois lados da fronteira, como mais uma vez se comprovou no recente jogo que opôs Portugal a Espanha durante o Euro 2004, a pretexto do qual se ressuscitaram memórias do nosso passado de conflitos, com a padeira e o Condestável, mas sem Viriato, embora os espanhóis tenham então falado dele mais uma vez, curiosamente atribuindo-lhe a nacionalidade portuguesa. "El Mundo" de 22 de Junho: "(...) O único português que nos ensinaram a amar neste lado da Península foi Viriato, esse pastor lusitano, símbolo da resistência contra o invasor romano", mas acrescentava o autor desta linhas, Miguel Ângel Mellado, "espanhóis e portugueses somos tão parecidos que Figo, com a camisola nacional, seria um espanholaço, casado, ainda por cima, como uma loura de olhos azuis turquesa, que é o sonho de todo o ibérico. Durante séculos batalhámos pela mesma mesquinhez, vender escravos negros de África e expoliar os recursos do Novo Mundo. As pazes sempre vieram por intermédio do Papa de turno. (...) Ódio não faltou. O amor trouxeram-no a Espanha as isabéis de Portugal (...)". Ponto final nesta incursão. Regressemos assim a Viriato, aos textos originais e ao que se reescreveu depois. A começar por André de Resende e as suas "Antiguidades da Lusitânia" puxando-o para o espaço português, embora antes dele os espanhóis tivessem tido uma primeira tentação de apropriação, como recorda Pastor Munoz. Está na "Crónica Geral de Espanha", da responsabilidade do rei de Castela Alfonso X, chamado o Sábio, século XIII portanto, sendo então Viriato apresentado como "espanhol, natural da terra de Lucena", na Andaluzia, província de Córdoba, o que até poderá ser uma parte da verdade. Lá iremos. Na mesma altura que Resende aportuguesava, o grande escritor espanhol que foi Lope de Vega tentava o equilíbrio: "Vi romanos a mis pies/para qué cuentas os doy/pues basta decir que soy/ espanol y portuguès". Era uma forma de resolver a questão, mas assim não quiseram os portugueses. Em plena Restauração, já com os Filipes remetidos para o outro lado da fronteira, o beirão Garcia de Mascarenhas dava à letra o poema heróico 20 cantos a que chamou de "Viriato Trágico". Peremptório: "Nasceu naquella serra, que chamada/ Hermínia foi, hoje se chama Estrella". E assim se fixou a figura que nos cairia no colo no século passado, que foi sem dúvida o grande tempo da exaltação de Viriato. Logo na Primeira República em que entra obrigatoriamente nos manuais escolares e depois sobretudo com a obra do alemão Adolfo Schulten, "Viriato", publicada em 1927, mas que só foi editada em português em 1940, precisamente o ano da exaltação do "mundo português. Das páginas de Schulten saiu, segundo Guerra, o principal contributo para o mito: "Viriato é oriundo da Lusitânia ocidental, que confina com o oceano e verdadeiramente da montanha. A sua pátria era por certo a serra da Estrela, o "mons Herminius"(...) Hoje mesmo, habita ali no meio de privações e na solidão uma população livre e selvagem(...)" Na altura, é bom recordar, quem imperava por cá era Oliveira Salazar, também ele um austero filho das Beiras. A colagem foi simples e eficaz. Recordam Guerra e Fabião que ainda em 1940, quando da inauguração da estátua de Viriato em Viseu, o historiador Lopes Dias estabelece um paralelo explícito entre o herói lusitano e o ditador, ambos homens sós, sóbrios, desprendidos das riquezas materiais. Anos antes, na Sociedade de Geografia, também Alfredo Athayde, que foi o tradutor da obra de Schulten, se esforçara no paralelismo: "(...) quando o futuro da Pátria se torna brumoso logo aparece alguém de entre os portugueses que, com mão firme e corajosa, os sabe conduzir novamente ao caminho da honra e glória". Não tivesse ocorrido a guerra colonial e o trajecto de Viriato pelo Estado Novo estaria definido. Só que o pastor beirão passara também, e sobretudo, para a História como o mestre de todas as guerrilhas. Brilhante, mesmo quando visto à luz de hoje, como reconhecem analistas militares. Era um chefe guerrilheiro que lutava contra os conquistadores. Com os movimentos de libertação em armas em África, Salazar preferiu não arriscar novas comparações. É convicção de Amílcar Guerra e Carlos Fabião que foi este risco que "determinou a exclusão de Viriato do programa de ensino" a partir do final da década de 60. O que só em parte é verdade. A figura do pastor desapareceu oficialmente, mas manteve-se nos bancos escolares através do testemunho de professores. Hoje mesmo, apesar de não estar mencionada no programa do ensino básico - que era o seu lugar de outros tempos - não deixa de estar presente em vários dos diferentes manuais existentes para o 4º ano. De uma forma sintética e liminar, como por exemplo se pode comprovar no livro "Outros tempos, Outras Histórias", da Porto Editora: "Os lusitanos elegeram um chefe: Viriato. Ele, que havia sido pastor na serra da Estrela, transformou-se num grande guerreiro (...)". Apaga-se a polémica, perpetua-se o mito. Da origem de Viriato apenas temos o relato de Diodoro, que a situa nas montanhas e sendo "originário dos lusitanos que habitam junto ao Oceano". Mas o que queria Diodoro dizer exactamente? Amílcar Guerra refere, a respeito, que a menção ao Oceano é também ela excessivamente vaga. Da perspectiva de Roma, que era então o centro do mundo, também Bragança, por exemplo, estava perto das terras banhadas pelo Atlântico. Como também são várias as montanhas que existem no território onde progrediam os lusitanos no século II antes de Cristo, o tempo de Viriato. Amílcar Guerra, mas também Pastor Munoz, insistem que continuam a não existir elementos fiáveis para dar uma resposta à questão das origens do herói - "O único dado seguro é que Viriato era lusitano." O espanhol Garcia Moreno que, em 1988, publicou o estudo pioneiro deste regresso às fontes, acrescenta uma hipótese dando-o como originário das zonas mais meridionais da Lusitânia, sempre para sul do Tejo, sublinhando a propósito que os relatos dos antigos situam o centro do poder de Viriato na desaparecida cidade de Arsa, provavelmente situada muito perto da actual Zalamea, no município de Badajoz. Do que é hoje a província de Córdoba saíram os assassinos do pastor, que eram antes seus grandes amigos, e também os sobreviventes do massacre ordenado pelo pretor Galba, contingente de que Viriato faria parte. Esta origem meridional para o nosso soturno pastor também não é repudiada por Amílcar Guerra. Sendo certo, como constam dos relatos das guerras lusitanas, que as suas "incursões atingem terras tão distantes como Córdoba, Málaga ou a região de Toledo e que os confrontos alternam com fugas rápidas para o seu emblemático refúgio - as montanhas - não deixa de ser problemático admitir que o seu território de origem seja a distante serra da Estrela". O que leva o historiador português a avançar que a terra de Viriato se situou "provavelmente para lá do Tejo". No meio da incerteza, ganha, segundo ele, "maior verosimilhança o território que mais se aproxima do cenário bélico". Acrescente-se que praticamente todos os conflitos que se conhecem que opuseram lusitanos e romanos se travaram a sul do Tejo, na zona então chamada de Turdetania, junto ao vale do rio Guadalquivir. Os historiadores portugueses não excluem, contudo, que a terra de Viriato se situasse no que é hoje território português, num qualquer lugar de toda a zona que corresponde à área meridional de Portugal. A que se devem acrescentar as áreas espanholas confinantes. De Évora à Andaluzia pois, que a Lusitânia afinal também teve capital no que é hoje território espanhol. É este outro dos problemas destes "avós" reivindicados por Portugal - ninguém sabe ao certo quais as fronteiras da Lusitânia antes da ocupação romana ou mesmo se esta existia enquanto entidade distinta, já que os autores antigos se contradizem abertamente a este respeito. O que se poderá justificar pela hipótese de um território bem definido não ser compatível com a realidade étnica e social de então na Península. Subsiste, por exemplo, a dúvida: Os lusitanos seriam um povo ou um nome para um conjunto de povos? Fossem o que fossem eram quase por certo gente em movimento, salteadores como foram descritos por romanos, dando corpo, segundo o espanhol Perez Vilatela, a um "proto-estado itinerante, semelhante aos de Gengis Khan ou Átila". Uma hipótese para a sua localização: "No extremo ocidente hispânico, uma zona situada entre o Douro e o Tejo, mas que abrangeria também um amplo sector a sul deste". Já da província criada pelos romanos na chamada Hispânia Ulterior, quando todas estas terras já pertenciam ao império, são conhecidos os seus limites. Tinha capital em Mérida e "abrangia o território actualmente português a sul do Douro, bem como as províncias de Salamanca e Cáceres e uma parte das de Badajoz, Ávila e Toledo". "Não acredito que possamos dizer que somos descendentes dos lusitanos", sustenta Amílcar Guerra. Já no século XIX, Alexandre Herculano o dissera ao pôr em causa qualquer relação de continuidade histórica entre a Lusitânia e Portugal. Leite de Vasconcelos contestou-o. E Viriato, nesse tempo, acabou por enfileirar no arco da Rua Augusta ao lado das outras três figuras então tidas como maiores da aventura portuguesa: Nuno Álvares Pereira, Vasco da Gama e o Marquês de Pombal. Mas para lá da sua origem lusitana, há mais coisas que se sabem de Viriato e que parecem inquestionáveis. Por exemplo, segundo o historiador espanhol Blásquez Martinez, ele foi o "chefe mais famoso e mais perigoso que lutou contra Roma nos anos da conquista da Hispânia". Tivessem os portugueses outro sentido de humor ou de oportunidade e talvez Viriato nos surgisse hoje à memória mais como um Astérix do que retratado à imagem de Salazar. Coisa de que se podem também queixar os espanhóis, com quem o lusitano se viu equiparado a Francisco Franco. Os romanos demoraram 200 anos a conquistar a Hispânia. César arrumou o assunto na Gália em seis anos. É uma diferença de peso. As chamadas "Guerras Lusitanas" alimentaram muitas páginas de Roma: salteadores os lusitanos, pilhando terras ricas do Guadalquivir e entrando depois, já com Viriato, pelos territórios romanos. Foi uma das grandes diferenças introduzidas pelo pastor que se tornou salteador e depois chefe dos lusitanos durante oito anos: transformou a guerra de guerrilha, até então defensiva, numa estratégia de ataque. Durante oito anos esteve à frente de um exército multiétnico. Que mais foi Viriato? Possidónio traça-lhe a imagem exaltada séculos depois por Rousseau, do "bom selvagem", refere Amílcar Guerra. Quer isto dizer que nele são gabadas as virtudes de quem vive na Natureza por contraponto à contaminação de que sofrerá vida urbana. Extraordinariamente forte, rápido e ágil, um homem que comia e dormia muito pouco, que desprezava as riquezas materiais, por exemplo as detidas pelo seu sogro Astolpas. Também louvado pela justiça na repartição dos saques e que empregava com frequência as alegorias ou parábolas. Os habitantes de Túci, hoje Martos, em Jaén, foram um dos alvos desta sua forma de falar. A história contada por Diodoro: Como oscilavam na sua lealdade, pendendo ora para os romanos, ora para Viriato, contou este que havia "um certo indivíduo, já de meia idade, que tinha casado com duas mulheres. A mais nova, desejando ter o homem semelhante a si, arrancava-lhe da cabeça os cabelos grisalhos; a velha, os negros; até que por fim, entre elas as duas, o homem, arrancado o cabelo, tornou-se rapidamente careca. Algo de semelhante aconteceria aos habitantes de Túci, pois os romanos matavam os que dissidiam contra eles, os lusitanos eliminavam os seus inimigos, e a cidade ficaria deserta(...)". De certo modo, Viriato nasceu para a História já sob a roupagem do mito. O que lhe foi acrescentado depois apenas veio acentuar esta faceta. Um "feixe de clichés", dizem Guerra e Fabião sobre a imagem construída para esta figura que, segundo eles, e por causa disso, "podia servir de verdadeiro pronto a vestir para chefes políticos". "Um herói redivivo que renasce sempre que a pátria se encontra ameaçada", escreveu, também, a propósito de Viriato, Artur de Sousa Veríssimo na tese de mestrado que apresentou na universidade dos Açores. E onde sobre alegadas continuidades entre eles e nós (os lusitanos e portugueses) recorda o facto indesmentível de existirem mil anos de permeio entre Viriato e o fundador de Portugal, D. Afonso Henriques. Teria sido só uma "hibernação"? Improvável. Neste percurso de pôr em causa verdades adquiridas acontecem coisas estranhas. Uma delas foi recordada por Veríssimo e diz respeito ao arqueólogo inglês Simon James, que a revelou num artigo publicado em 1997 no "Finantial Times". Ele acabara de defender que as actuais ilhas britânicas nunca tinham sido invadidas por celtas. O resultado, nas suas palavras: "Na semana passada recebi uma mensagem por 'mail' acusando-me de genocídio." OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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Domingo, 01 de Agosto de 2004 %Clara Viana Viriato é lusitano? Sim. Viriato é português? Talvez não. O "aportuguesamento" do herói da Lusitânia não tem fundamento histórico. As investigações sobre a origem beirã deste guerreiro continuam em Portugal e em Espanha. Desde há alguns anos que historiadores têm vindo a perscrutar os textos antigos para tentar estabelecer o que de facto eles nos dizem sobre Viriato e a Lusitânia. Sendo tantas vezes a História as histórias que sobre ela contamos, estes regressos às fontes têm frequentemente o efeito de turbilhões. As fontes, aqui, são os textos de sábios gregos e romanos e que no que respeita a Viriato se constituem como exclusivos, ou seja, sem eles nada sobre o "nosso" pastor teria chegado até nós. Feita a precisão, revele-se o primeiro turbilhão: em lado nenhum, relacionada com Viriato, existe qualquer referência à serra da Estrela, o então chamado "mons Herminius", constata o historiador e arqueólogo Amílcar Guerra que, em conjunto com o também historiador e arqueólogo Carlos Fabião, ambos da Faculdade de Letras de Lisboa, tem liderado por cá a nova investigação sobre aquela figura histórica. Na Espanha o nome em destaque é o de Mauricio Pastor Munoz, professor da Universidade de Granada, que em Maio passado publicou o seu último trabalho (o quinto) sobre o caso - "Viriato, el héroe hispano que luchó por la libertad de su pueblo". Assim apresentado pelo autor: "Com dados e lendas reconstruí a biografia de Viriato. O que aqui se narra é, mais coisa menos coisa, o que hoje sabemos sobre o personagem." E o que "sabemos", como têm por certo Munoz, como Guerra e Fabião, é que na origem ninguém atribuiu a Viriato um "berço" nas terras inóspitas das Beiras, sejam elas a serra da Estrela ou Viseu ou outras. "Diz-se que é um homem das montanhas, que se refugia nas montanhas, mas não se especifica quais", esclarece Amílcar Guerra. É o que diz Diodoro, um autor do século III, que é a fonte para muitos dos pormenores da vida de Viriato. Tendo vivido muito depois do célebre lusitano terá ido buscar muitas das informações a Possidónio, um sírio que viveu no rescaldo das guerras lusitanas, travadas no século II a.C. Outro autor contemporâneo do conflito, que é também uma das fontes para esta época, é Políbio, particularmente conhecedor da ciência militar. Apiano, um alexandrino, do século II depois de Cristo, compõe este primeiro quarteto fundamental para apurar o que se passou nesses tempos em que o Ocidente era ainda território "bárbaro". A eles juntem-se os geógrafos Ptlomeu e Estrabão e teremos praticamente tudo aquilo que começou por ser relatado. Na verdade, foi já muitos séculos depois de Viriato e dos escritos que nos transmitiram a sua história que começou o seu "aportuguesamento" e a origem beirã lhe acabou colada. Não será por acaso, como notam Amílcar Guerra e Carlos Fabião, que este movimento tivesse começado no final do século XVI, precisamente a altura em que "a monarquia filipina almejava à recuperação, no concreto, do conceito político territorial de Hispânia", ou seja, à unificação da Península Ibérica sob a mesma coroa. É em alturas como aquela que são precisos heróis. O pioneiro da arqueologia em Portugal, André de Resende, recorreu aos lusitanos e a Viriato, apresentando-os como os antepassados dos portugueses (os "avós dos nossos avós", como mais tarde escreveria Aquilino Ribeiro) e dando forma precisamente à palavra "lusíada", até então inexistente. Por oposição à unificação desejada por Castela deitava-se mão a uma alegada especificidade ou identidade nacional que viria já de tempos remotos, antes mesmo de existirem Portugal ou Espanha, quando o espaço hoje ocupado pelos dois países ibéricos era a Hispânia cobiçada pelos romanos. "Historicamente não há uma fronteira com a Espanha", ressalva Amílcar Guerra, sublinhando as continuidades de cá para lá ou vice-versa, do Minho para a Galiza, da Beira Baixa para Cáceres, da raia portuguesa, "culturalmente um prolongamento da Andaluzia". É uma perspectiva que está longe de ser maioritária dos dois lados da fronteira, como mais uma vez se comprovou no recente jogo que opôs Portugal a Espanha durante o Euro 2004, a pretexto do qual se ressuscitaram memórias do nosso passado de conflitos, com a padeira e o Condestável, mas sem Viriato, embora os espanhóis tenham então falado dele mais uma vez, curiosamente atribuindo-lhe a nacionalidade portuguesa. "El Mundo" de 22 de Junho: "(...) O único português que nos ensinaram a amar neste lado da Península foi Viriato, esse pastor lusitano, símbolo da resistência contra o invasor romano", mas acrescentava o autor desta linhas, Miguel Ângel Mellado, "espanhóis e portugueses somos tão parecidos que Figo, com a camisola nacional, seria um espanholaço, casado, ainda por cima, como uma loura de olhos azuis turquesa, que é o sonho de todo o ibérico. Durante séculos batalhámos pela mesma mesquinhez, vender escravos negros de África e expoliar os recursos do Novo Mundo. As pazes sempre vieram por intermédio do Papa de turno. (...) Ódio não faltou. O amor trouxeram-no a Espanha as isabéis de Portugal (...)". Ponto final nesta incursão. Regressemos assim a Viriato, aos textos originais e ao que se reescreveu depois. A começar por André de Resende e as suas "Antiguidades da Lusitânia" puxando-o para o espaço português, embora antes dele os espanhóis tivessem tido uma primeira tentação de apropriação, como recorda Pastor Munoz. Está na "Crónica Geral de Espanha", da responsabilidade do rei de Castela Alfonso X, chamado o Sábio, século XIII portanto, sendo então Viriato apresentado como "espanhol, natural da terra de Lucena", na Andaluzia, província de Córdoba, o que até poderá ser uma parte da verdade. Lá iremos. Na mesma altura que Resende aportuguesava, o grande escritor espanhol que foi Lope de Vega tentava o equilíbrio: "Vi romanos a mis pies/para qué cuentas os doy/pues basta decir que soy/ espanol y portuguès". Era uma forma de resolver a questão, mas assim não quiseram os portugueses. Em plena Restauração, já com os Filipes remetidos para o outro lado da fronteira, o beirão Garcia de Mascarenhas dava à letra o poema heróico 20 cantos a que chamou de "Viriato Trágico". Peremptório: "Nasceu naquella serra, que chamada/ Hermínia foi, hoje se chama Estrella". E assim se fixou a figura que nos cairia no colo no século passado, que foi sem dúvida o grande tempo da exaltação de Viriato. Logo na Primeira República em que entra obrigatoriamente nos manuais escolares e depois sobretudo com a obra do alemão Adolfo Schulten, "Viriato", publicada em 1927, mas que só foi editada em português em 1940, precisamente o ano da exaltação do "mundo português. Das páginas de Schulten saiu, segundo Guerra, o principal contributo para o mito: "Viriato é oriundo da Lusitânia ocidental, que confina com o oceano e verdadeiramente da montanha. A sua pátria era por certo a serra da Estrela, o "mons Herminius"(...) Hoje mesmo, habita ali no meio de privações e na solidão uma população livre e selvagem(...)" Na altura, é bom recordar, quem imperava por cá era Oliveira Salazar, também ele um austero filho das Beiras. A colagem foi simples e eficaz. Recordam Guerra e Fabião que ainda em 1940, quando da inauguração da estátua de Viriato em Viseu, o historiador Lopes Dias estabelece um paralelo explícito entre o herói lusitano e o ditador, ambos homens sós, sóbrios, desprendidos das riquezas materiais. Anos antes, na Sociedade de Geografia, também Alfredo Athayde, que foi o tradutor da obra de Schulten, se esforçara no paralelismo: "(...) quando o futuro da Pátria se torna brumoso logo aparece alguém de entre os portugueses que, com mão firme e corajosa, os sabe conduzir novamente ao caminho da honra e glória". Não tivesse ocorrido a guerra colonial e o trajecto de Viriato pelo Estado Novo estaria definido. Só que o pastor beirão passara também, e sobretudo, para a História como o mestre de todas as guerrilhas. Brilhante, mesmo quando visto à luz de hoje, como reconhecem analistas militares. Era um chefe guerrilheiro que lutava contra os conquistadores. Com os movimentos de libertação em armas em África, Salazar preferiu não arriscar novas comparações. É convicção de Amílcar Guerra e Carlos Fabião que foi este risco que "determinou a exclusão de Viriato do programa de ensino" a partir do final da década de 60. O que só em parte é verdade. A figura do pastor desapareceu oficialmente, mas manteve-se nos bancos escolares através do testemunho de professores. Hoje mesmo, apesar de não estar mencionada no programa do ensino básico - que era o seu lugar de outros tempos - não deixa de estar presente em vários dos diferentes manuais existentes para o 4º ano. De uma forma sintética e liminar, como por exemplo se pode comprovar no livro "Outros tempos, Outras Histórias", da Porto Editora: "Os lusitanos elegeram um chefe: Viriato. Ele, que havia sido pastor na serra da Estrela, transformou-se num grande guerreiro (...)". Apaga-se a polémica, perpetua-se o mito. Da origem de Viriato apenas temos o relato de Diodoro, que a situa nas montanhas e sendo "originário dos lusitanos que habitam junto ao Oceano". Mas o que queria Diodoro dizer exactamente? Amílcar Guerra refere, a respeito, que a menção ao Oceano é também ela excessivamente vaga. Da perspectiva de Roma, que era então o centro do mundo, também Bragança, por exemplo, estava perto das terras banhadas pelo Atlântico. Como também são várias as montanhas que existem no território onde progrediam os lusitanos no século II antes de Cristo, o tempo de Viriato. Amílcar Guerra, mas também Pastor Munoz, insistem que continuam a não existir elementos fiáveis para dar uma resposta à questão das origens do herói - "O único dado seguro é que Viriato era lusitano." O espanhol Garcia Moreno que, em 1988, publicou o estudo pioneiro deste regresso às fontes, acrescenta uma hipótese dando-o como originário das zonas mais meridionais da Lusitânia, sempre para sul do Tejo, sublinhando a propósito que os relatos dos antigos situam o centro do poder de Viriato na desaparecida cidade de Arsa, provavelmente situada muito perto da actual Zalamea, no município de Badajoz. Do que é hoje a província de Córdoba saíram os assassinos do pastor, que eram antes seus grandes amigos, e também os sobreviventes do massacre ordenado pelo pretor Galba, contingente de que Viriato faria parte. Esta origem meridional para o nosso soturno pastor também não é repudiada por Amílcar Guerra. Sendo certo, como constam dos relatos das guerras lusitanas, que as suas "incursões atingem terras tão distantes como Córdoba, Málaga ou a região de Toledo e que os confrontos alternam com fugas rápidas para o seu emblemático refúgio - as montanhas - não deixa de ser problemático admitir que o seu território de origem seja a distante serra da Estrela". O que leva o historiador português a avançar que a terra de Viriato se situou "provavelmente para lá do Tejo". No meio da incerteza, ganha, segundo ele, "maior verosimilhança o território que mais se aproxima do cenário bélico". Acrescente-se que praticamente todos os conflitos que se conhecem que opuseram lusitanos e romanos se travaram a sul do Tejo, na zona então chamada de Turdetania, junto ao vale do rio Guadalquivir. Os historiadores portugueses não excluem, contudo, que a terra de Viriato se situasse no que é hoje território português, num qualquer lugar de toda a zona que corresponde à área meridional de Portugal. A que se devem acrescentar as áreas espanholas confinantes. De Évora à Andaluzia pois, que a Lusitânia afinal também teve capital no que é hoje território espanhol. É este outro dos problemas destes "avós" reivindicados por Portugal - ninguém sabe ao certo quais as fronteiras da Lusitânia antes da ocupação romana ou mesmo se esta existia enquanto entidade distinta, já que os autores antigos se contradizem abertamente a este respeito. O que se poderá justificar pela hipótese de um território bem definido não ser compatível com a realidade étnica e social de então na Península. Subsiste, por exemplo, a dúvida: Os lusitanos seriam um povo ou um nome para um conjunto de povos? Fossem o que fossem eram quase por certo gente em movimento, salteadores como foram descritos por romanos, dando corpo, segundo o espanhol Perez Vilatela, a um "proto-estado itinerante, semelhante aos de Gengis Khan ou Átila". Uma hipótese para a sua localização: "No extremo ocidente hispânico, uma zona situada entre o Douro e o Tejo, mas que abrangeria também um amplo sector a sul deste". Já da província criada pelos romanos na chamada Hispânia Ulterior, quando todas estas terras já pertenciam ao império, são conhecidos os seus limites. Tinha capital em Mérida e "abrangia o território actualmente português a sul do Douro, bem como as províncias de Salamanca e Cáceres e uma parte das de Badajoz, Ávila e Toledo". "Não acredito que possamos dizer que somos descendentes dos lusitanos", sustenta Amílcar Guerra. Já no século XIX, Alexandre Herculano o dissera ao pôr em causa qualquer relação de continuidade histórica entre a Lusitânia e Portugal. Leite de Vasconcelos contestou-o. E Viriato, nesse tempo, acabou por enfileirar no arco da Rua Augusta ao lado das outras três figuras então tidas como maiores da aventura portuguesa: Nuno Álvares Pereira, Vasco da Gama e o Marquês de Pombal. Mas para lá da sua origem lusitana, há mais coisas que se sabem de Viriato e que parecem inquestionáveis. Por exemplo, segundo o historiador espanhol Blásquez Martinez, ele foi o "chefe mais famoso e mais perigoso que lutou contra Roma nos anos da conquista da Hispânia". Tivessem os portugueses outro sentido de humor ou de oportunidade e talvez Viriato nos surgisse hoje à memória mais como um Astérix do que retratado à imagem de Salazar. Coisa de que se podem também queixar os espanhóis, com quem o lusitano se viu equiparado a Francisco Franco. Os romanos demoraram 200 anos a conquistar a Hispânia. César arrumou o assunto na Gália em seis anos. É uma diferença de peso. As chamadas "Guerras Lusitanas" alimentaram muitas páginas de Roma: salteadores os lusitanos, pilhando terras ricas do Guadalquivir e entrando depois, já com Viriato, pelos territórios romanos. Foi uma das grandes diferenças introduzidas pelo pastor que se tornou salteador e depois chefe dos lusitanos durante oito anos: transformou a guerra de guerrilha, até então defensiva, numa estratégia de ataque. Durante oito anos esteve à frente de um exército multiétnico. Que mais foi Viriato? Possidónio traça-lhe a imagem exaltada séculos depois por Rousseau, do "bom selvagem", refere Amílcar Guerra. Quer isto dizer que nele são gabadas as virtudes de quem vive na Natureza por contraponto à contaminação de que sofrerá vida urbana. Extraordinariamente forte, rápido e ágil, um homem que comia e dormia muito pouco, que desprezava as riquezas materiais, por exemplo as detidas pelo seu sogro Astolpas. Também louvado pela justiça na repartição dos saques e que empregava com frequência as alegorias ou parábolas. Os habitantes de Túci, hoje Martos, em Jaén, foram um dos alvos desta sua forma de falar. A história contada por Diodoro: Como oscilavam na sua lealdade, pendendo ora para os romanos, ora para Viriato, contou este que havia "um certo indivíduo, já de meia idade, que tinha casado com duas mulheres. A mais nova, desejando ter o homem semelhante a si, arrancava-lhe da cabeça os cabelos grisalhos; a velha, os negros; até que por fim, entre elas as duas, o homem, arrancado o cabelo, tornou-se rapidamente careca. Algo de semelhante aconteceria aos habitantes de Túci, pois os romanos matavam os que dissidiam contra eles, os lusitanos eliminavam os seus inimigos, e a cidade ficaria deserta(...)". De certo modo, Viriato nasceu para a História já sob a roupagem do mito. O que lhe foi acrescentado depois apenas veio acentuar esta faceta. Um "feixe de clichés", dizem Guerra e Fabião sobre a imagem construída para esta figura que, segundo eles, e por causa disso, "podia servir de verdadeiro pronto a vestir para chefes políticos". "Um herói redivivo que renasce sempre que a pátria se encontra ameaçada", escreveu, também, a propósito de Viriato, Artur de Sousa Veríssimo na tese de mestrado que apresentou na universidade dos Açores. E onde sobre alegadas continuidades entre eles e nós (os lusitanos e portugueses) recorda o facto indesmentível de existirem mil anos de permeio entre Viriato e o fundador de Portugal, D. Afonso Henriques. Teria sido só uma "hibernação"? Improvável. Neste percurso de pôr em causa verdades adquiridas acontecem coisas estranhas. Uma delas foi recordada por Veríssimo e diz respeito ao arqueólogo inglês Simon James, que a revelou num artigo publicado em 1997 no "Finantial Times". Ele acabara de defender que as actuais ilhas britânicas nunca tinham sido invadidas por celtas. O resultado, nas suas palavras: "Na semana passada recebi uma mensagem por 'mail' acusando-me de genocídio." OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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