Proezas e fracassos nas Olimpíadas

13-09-2004
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Proezas e Fracassos nas Olimpíadas

Domingo, 01 de Agosto de 2004 %Luís Francisco HISTÓRIAS EXEMPLARES O segredo do alemão Jesse Owens (EUA), Berlim 1936 Justiça poética? Ironia do destino? Os grandes Jogos da propaganda, organizados pela Alemanha nazi para apregoar a superioridade da raça ariana, tiveram como grande figura um atleta negro norte-americano, filho de apanhadores de algodão, neto de escravos. Jesse Owens chegou a Munique, em 1936, já aureolado com a fama dos verdadeiros fenómenos: no ano anterior, num "meeting" de atletismo no seu país, batera três recordes mundiais e igualara um quarto em menos de uma hora. Especialista da velocidade, ele mostrou-se à altura dos acontecimentos e, perante os rendidos alemães, conquistou quatro medalhas de ouro: nas corridas de 100 e 200m, no salto em comprimento e na estafeta de 4x100m. O que pouca gente soube na altura foi que a segunda prova, a do salto em comprimento, esteve muito perto de se tornar um falhanço. Durante a qualificação, Owens falhou os dois primeiros saltos e só dispunha de mais um para não ser eliminado. "Lutei muito, mas o medo começou a dominar cada molécula do meu ser", recorda o campeão. Nessa altura, o seu maior rival, o alemão Lutz Long, passou por ele e segredou-lhe ao ouvido: "Calma! Mede bem os passos, salta antes da marca e vais ver que te qualificas sem problemas." Owens fez isso mesmo e passou à final. Aí, perante o olhar do ditador Adolf Hitler, Long esteve na frente até ao penúltimo ensaio, mas Owens saltou 8,06m a fechar e chegou à medalha de ouro. Humilhado, Hitler retirou-se, para não ter de cumprimentar o vencedor. Nenhum argumentista de Hollywood faria melhor. Sangue seropositivo Greg Louganis (EUA), Seul 1988 Raramente numa modalidade olímpica um atleta marcou tão vincadamente a sua superioridade sobre os rivais como o fez Greg Louganis nos saltos para a água. Durante anos, o filho adoptivo da família Louganis (os progenitores, de ascendência samoana e sueca, tiveram-no com apenas 15 anos e acabaram por entregá-lo para adopção) viveu na sombra do grande campeão Klaus Dibiasi, campeão olímpico em 1976. Na altura, Louganis conquistou a medalha de prata na plataforma de dez metros, mas esse momento marcou, efectivamente, a passagem do testemunho. Só que em 1980 os EUA boicotaram os Jogos de Moscovo e o adolescente problemático e conturbado (teve problemas de droga, tabaco e álcool, era disléxico e chegou a tentar suicidar-se) não teve hipóteses de mostrar o seu talento. Continuou a treinar-se e foi conseguindo conquistar a autoconfiança que lhe faltava fora das pranchas e das piscinas. Nos Jogos de Los Angeles 1984 conquistou as duas medalhas de ouro em disputa e fez o mesmo quatro anos depois, em Seul. Nessa altura, já sabia que era seropositivo, um dado muito importante para perceber a carga emocional da situação que então viveu. No penúltimo salto da qualificação, o mundo gelou quando o grande campeão bateu com a cabeça na prancha e caiu desamparado na água. "Percebi que não tinha sangrado para dentro da piscina, mas sabia que tinha a obrigação de dizer ao médico que me coseu a ferida que era seropositivo", recordou depois. Os juízes pontuaram o salto com zero, mas 35 minutos depois Louganis regressou para o último ensaio de qualificação e passou à final. No dia seguinte, fez 11 saltos perfeitos e conquistou o ouro. Foi a mais impressionante reviravolta do destino na história dos Jogos. No regresso de Seul, a vida pessoal de Greg complicou-se. E então ele "saiu do armário", com um livro, lançado em 1995, em que anunciou a sua condição de seropositivo. Um ano antes assumira a homossexualidade. Quase 16 anos depois, as suas marcas olímpicas, acima dos 700 pontos, continuam a ser referência. Atropelado nos treinos Carlos Lopes (Portugal), Los Angeles 1984 Ao fim de 20 anos de carreira, milhares e milhares de quilómetros corridos em treinos e provas, em crosse, pista e estrada, Carlos Lopes estava, finalmente, na rampa de lançamento para concretizar a sua grande ambição: ser campeão olímpico. Depois do segundo lugar nos 10.000m nos Jogos de Montreal 1976, batido pela velocidade e - soube-se depois - pelas transfusões de sangue do finlandês Lasse Viren, Lopes virou-se para a mais longa distância do programa, a maratona. A poucos dias da partida para Los Angeles, onde participaria nos Jogos de 1984, Lopes voltou a ser notícia, mas pelos piores motivos: durante um treino nas ruas de Lisboa, fora atropelado. Seria o fim para um homem que renascera, praticamente, dos mortos? Aos 37 anos, o atleta que vencera uma terrível lesão no tendão de Aquiles e regressara ao mais alto nível após tantos anos de apagamento teria ainda forças para recuperar? Contam os registos que Lopes rolou sobre o "capot" do carro que o colheu e entrou pelo pára-brisas, com um cotovelo à frente. O país gelou. Quanto ao beirão de Vildemoinhos, recolheu-se, "lambeu as feridas" e continuou a treinar-se afincadamente. Como todos os verdadeiros heróis, a sorte também jogou a seu favor: nesse ano, a maratona masculina só se correu no último dia e o vencedor entraria no estádio durante a cerimónia de encerramento. E o vencedor foi... Carlos Lopes. Num cenário grandioso, Portugal conquistava a sua primeira medalha de ouro olímpica. Foi português o hino que se ouviu nesse último dia dos Jogos, portuguesa a bandeira que tremulou no mastro mais alto do Coliseu de Los Angeles. A imagem que fica para a história, porém, é a de um Lopes de sorriso aberto, acenando à multidão enquanto dava a última volta ao estádio. Para quem tivesse dúvidas, ficava provado que até o cotovelo fazia falta para ser campeão da maratona. GRANDES FEITOS Sete medalhas Mark Spitz (EUA), Munique 1972 Talvez ele tenha falado cedo demais. Mas os que o acusaram de megalomania também terão preferido ficar em silêncio. Nos Jogos Olímpicos de 1968, na Cidade do México, o nadador Mark Spitz anunciou que a sua ambição era conquistar seis medalhas de ouro. Falhou: levou para casa "apenas" duas medalhas de ouro, uma de prata e outra de bronze. Em Munique 1972 apareceu ainda em melhor forma. Num impressionante furacão de vitórias, o rapaz de cabelo farto e bigode farfalhudo, tão ao gosto dos anos 70, conquistou sete medalhas de outro em outras tantas provas - e todos os triunfos foram conseguidos com recordes mundiais! Tantos anos depois, Spitz continua a ser o nome que toda a gente associa à natação e o único atleta olímpico a levar para casa sete títulos nos mesmos Jogos. Em oito dias, o mito construiu-se. Começou nos 200m mariposa, continuou com a estafeta de 4x100m livres, 200m livres, 100m mariposa, 4x200m livres, 100m livres e 4x100m estilos. Como alguém disse uma vez, "é como lançar os dados num casino de Las Vegas": "Ele lançou-os sete vezes seguidas. Ganhou a primeira, a segunda também não é difícil. A terceira já é impressionante. À quarta, junta-se uma multidão. Na quinta, o casino inteiro está em suspenso. Perante a sexta, a imprensa escrita muda as manchetes e fica à espera da sétima." Visto como o potencial sucessor do norte-americano, o australiano Ian Thorpe é o primeiro a dizer que a proeza de Spitz não será igualada. Mas é, pelo menos, glosada. Ainda hoje, tantos anos depois, muita gente nos EUA avisa quando pretende fazer algo arriscado mas que pode dar bons frutos: "Vou fazer uma cena à Spitz." Boneca perfeita Nadia Comaneci (Roménia), Montreal 1976 Ninguém estava preparado para aquilo. E se o factor humano (leia-se o júri) ainda reagiu, apesar de ter demorado muito mais do que habitual, as máquinas não tiveram hipótese. No marcador do pavilhão onde se disputavam as provas de ginástica dos Jogos de Montreal 1976 apareceu escrito: "N. Comaneci 1,00." O mundo acabava de assistir ao primeiro exercício perfeito de ginástica desportiva olímpica. Nadia Comaneci conseguira a proeza de deixar os intimidatórios juízes sem palavras e voltou a repetir a proeza: depois dessa primeira vez, nas paralelas assimétricas, a pequena romena coleccionou mais seis notas "10" e acabou os Jogos com três medalhas de ouro, uma de prata e outra de bronze. Mais importante do que tudo isso, ela passava a fazer parte do património mundial de heróis desportivos, aquelas figuras cujo nome se confunde com a da modalidade que praticam. Quatro anos depois, em Moscovo 1980, mais duas medalhas de ouro e duas de prata. Por essa altura, as notas "10" já se multiplicavam e as regras de pontuação acabaram mesmo por ser alteradas, passando a recorrer às milésimas. E foi o fim dos exercícios "perfeitos". Comaneci manteve a fama e a notoriedade mundial, mas a Roménia (tal como Salazar fizera uma vez com Eusébio, Ceausescu considerou-a património nacional) não a deixava sair para o estrangeiro. A história jogou a seu favor e, com a queda dos regimes comunistas, a agora crescidinha Nadia pôde ir para os EUA casar-se com um ginasta norte-americano (o mesmo que a beijara, para os fotógrafos, numa prova em Nova Iorque, em 1976, por ser o vencedor masculino - embora ela só se lembrasse, dessa altura, que a equipa dos EUA tinha "muitos rapazes louros"). Considerada uma das mulheres mais importantes do século XX, foi colocada no Olimpo dos desportistas do século passado ao lado de nomes como Muhammad Ali, Pelé, Steffi Graf, Michael Jordan ou Carl Lewis. Mas isso são apenas títulos. Na memória de todos os que a viram actuar, ela vive como a boneca perfeita. Ouro cinco vezes seguidas Steven Redgrave (Grã-Bretanha), Sydney 2000 Pode não ter sido rodeado da tempestade mediática que marcou outros grandes feitos olímpicos, mas o triunfo do remador britânico Steven Redgrave na prova de shell de quatro sem timoneiro nos Jogos de Sydney 2000 é um dos momentos mais marcantes da história do olimpismo. Graças a este triunfo, Redgrave passou a ser considerado um dos melhores atletas olímpicos de todos os tempos. Se não mesmo "o" maior. A medalha de ouro foi a quinta em outros tantos Jogos consecutivos. Um feito quase inacreditável, conseguido por um homem discreto que é um exemplo de excelência atlética e carácter humano. E se conquistar um título olímpico já é escrever o nome na história, entrar no Livro Guiness dos Recordes é um sublinhado que dá bem a importância do feito. Steven Redgrave é o único desportista a conquistar medalhas de ouro em cinco Olimpíadas consecutivas - são 16 anos, sempre ao mais alto nível! Tudo começou em Los Angeles 1984, com um título olímpico em shell de quatro com timoneiro. Seul 88, medalha de ouro em shell de dois sem timoneiro. Bis na mesma prova em Barcelona 92. "Tri" em Atlanta 96. E, finalmente, Sydney 2000. Depois dos Jogos de Atlanta, quando a proeza de quatro medalhas de ouro consecutivas já era inédita, Redgrave despediu-se em grande estilo. "Se alguém me vir entrar num barco daqui para a frente, tem autorização para me abater a tiro!", afirmou na altura. Felizmente, dessa vez ninguém o levou a sério. MISÉRIAS OLÍMPICAS Morte com sebo Francisco Lázaro (Portugal), Estocolmo 1912 Quando Portugal começou a sonhar com os Jogos Olímpicos, a vaga de entusiasmo tornou-se avassaladora, mas não trouxe consigo um "detalhe" fundamental: dinheiro. O Comité Olímpico Português ainda realizou um sarau em Lisboa para garantir receitas, mas a coisa não correu bem (havia greve do pessoal dos eléctricos...) e foi preciso reduzir a representação. Seguiram então para Estocolmo seis atletas, todos de elevada condição social à excepção do mais querido de todos, o maratonista Francisco Lázaro, que o povo apontava como grande favorito à conquista do título na maratona masculina. Nesse mesmo ano, num percurso horroroso, que incluía a subida da Calçada de Carriche, em Lisboa (de tal forma inclinada que serviu muitas vezes de local de decisão das clássicas provas de ciclistas Porto-Lisboa), Lázaro conseguira um tempo na casa das 2h52m. Como o título olímpico em Londres 1908 fora conquistado em 2h55m... Mas os portugueses não sabiam o que era treinar, nem planear. Sobrava-lhes em voluntarismo o que lhes faltava em preparação e, numa prova como a maratona, a fronteira entre o falhanço e a tragédia pode ser muito ténue. Francisco Lázaro, vá lá saber-se porquê, decidiu que a melhor forma de enfrentar a canícula que caía sobre Estocolmo era untar o corpo com sebo. Momentos antes da partida, os outros portugueses ainda tentaram limpá-lo, dar-lhe banho, mas era tarde de mais, a partida era daí a segundos. Partiu então Lázaro, de poros entupidos e cabeça destapada. Aos 30 km de prova, uma insolação prostrou-o e o popular atleta acabou morrer horas depois, no hospital. Começava em tragédia a participação olímpica portuguesa, na mesma prova em que, 72 anos mais tarde, Carlos Lopes conquistou o primeiro ouro lusitano. Setembro Negro Munique 1972 A face dos Jogos Olímpicos mudou para sempre a partir daquele dia 5 de Setembro de 1972. Nessa madrugada, um comando palestiniano de oito elementos iludiu a vigilância policial e invadiu as instalações da aldeia olímpica onde se encontrava a delegação de Israel. Na sequência dos acontecimentos que então se precipitaram, morreram 17 pessoas e o movimento olímpico ficou manchado para sempre pelo espectro da ameaça terrorista. A lista negra começou a ser escrita logo nos primeiros instantes do drama: dois israelitas que tentaram resistir à invasão do comando palestiniano foram imediatamente abatidos a tiro. Depois, os homens do "Setembro Negro" barricaram-se com nove reféns e exigiram a libertação de 200 compatriotas detidos em Israel. Já caía a noite quando a situação evoluiu. Dois helicópteros levaram raptores e reféns no que os primeiros pensavam ser um voo para um aeroporto onde os esperava o avião que lhes permitiria escapar rumo a um país árabe. Mas, na verdade, esperava-os uma armadilha numa base da NATO. Ao fim de um dia de angústia, as más notícias chegavam, esmagadoras: a tentativa de resgate correra mal e terminara com o trágico balanço de mais 15 mortos: os nove reféns, cinco terroristas e um polícia. Os outros três palestinianos foram presos. O movimento olímpico tremeu, mas a frase "Os Jogos não podem parar!" ganhou força e fez lei. Os Jogos não pararam. Mas mudaram para sempre. Doping Ben Johnson Seul 1988 Uma final da corrida de atletismo dos 100m é sempre um momento inesquecível, mas a dos Jogos Olímpicos de Seul 1988 perdurou na memória de todos pelos piores motivos. Quando o canadiano Ben Johnson voou sobre a meta e levantou o braço em sinal de triunfo, perante o olhar estupefacto do norte-americano Carl Lewis, segundo classificado, o mundo assistia a uma mentira que o passar do tempo só tem contribuído para agravar. Na verdade, Johnson estava dopado com um anabolizante e a sua desclassificação tornou-se num dos maiores escândalos da história dos Jogos. Símbolo de todos os batoteiros, dos que não receiam a vergonha de querer ganhar sem olhar a meios, Johnson tornou-se um proscrito e nunca mais foi ninguém. Quanto a Lewis, aclamado como um dos maiores atletas de todos os tempos e visto como o bom da fita, recebeu a medalha de ouro. Soube-se muitos anos mais tarde que também usou substâncias dopantes. O "doping" é o maior problema do desporto moderno. Durante muito tempo, o uso de substâncias para melhorar o rendimento dos atletas foi visto como normal, mas na segunda metade do século XX a sofisticação dos batoteiros (ou dos que para eles trabalhavam nos bastidores) começou a pôr em risco as suas próprias vidas. E a ética desportiva reagiu. Na verdade, é um combate sem tréguas, mas inglório. Diz-se que o rato anda sempre à frente do gato e a esta constatação juntam-se os interesses políticos, as fraudes, as hesitações e a própria consciência de que o espectáculo desportivo regrediria a níveis desinteressantes sem o uso de substâncias que melhoram o rendimento dos atletas. Há medida que o tempo passa, vai sendo necessário reescrever a história. E esse é sempre um exercício doloroso. 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Domingo, 01 de Agosto de 2004 %Luís Francisco HISTÓRIAS EXEMPLARES O segredo do alemão Jesse Owens (EUA), Berlim 1936 Justiça poética? Ironia do destino? Os grandes Jogos da propaganda, organizados pela Alemanha nazi para apregoar a superioridade da raça ariana, tiveram como grande figura um atleta negro norte-americano, filho de apanhadores de algodão, neto de escravos. Jesse Owens chegou a Munique, em 1936, já aureolado com a fama dos verdadeiros fenómenos: no ano anterior, num "meeting" de atletismo no seu país, batera três recordes mundiais e igualara um quarto em menos de uma hora. Especialista da velocidade, ele mostrou-se à altura dos acontecimentos e, perante os rendidos alemães, conquistou quatro medalhas de ouro: nas corridas de 100 e 200m, no salto em comprimento e na estafeta de 4x100m. O que pouca gente soube na altura foi que a segunda prova, a do salto em comprimento, esteve muito perto de se tornar um falhanço. Durante a qualificação, Owens falhou os dois primeiros saltos e só dispunha de mais um para não ser eliminado. "Lutei muito, mas o medo começou a dominar cada molécula do meu ser", recorda o campeão. Nessa altura, o seu maior rival, o alemão Lutz Long, passou por ele e segredou-lhe ao ouvido: "Calma! Mede bem os passos, salta antes da marca e vais ver que te qualificas sem problemas." Owens fez isso mesmo e passou à final. Aí, perante o olhar do ditador Adolf Hitler, Long esteve na frente até ao penúltimo ensaio, mas Owens saltou 8,06m a fechar e chegou à medalha de ouro. Humilhado, Hitler retirou-se, para não ter de cumprimentar o vencedor. Nenhum argumentista de Hollywood faria melhor. Sangue seropositivo Greg Louganis (EUA), Seul 1988 Raramente numa modalidade olímpica um atleta marcou tão vincadamente a sua superioridade sobre os rivais como o fez Greg Louganis nos saltos para a água. Durante anos, o filho adoptivo da família Louganis (os progenitores, de ascendência samoana e sueca, tiveram-no com apenas 15 anos e acabaram por entregá-lo para adopção) viveu na sombra do grande campeão Klaus Dibiasi, campeão olímpico em 1976. Na altura, Louganis conquistou a medalha de prata na plataforma de dez metros, mas esse momento marcou, efectivamente, a passagem do testemunho. Só que em 1980 os EUA boicotaram os Jogos de Moscovo e o adolescente problemático e conturbado (teve problemas de droga, tabaco e álcool, era disléxico e chegou a tentar suicidar-se) não teve hipóteses de mostrar o seu talento. Continuou a treinar-se e foi conseguindo conquistar a autoconfiança que lhe faltava fora das pranchas e das piscinas. Nos Jogos de Los Angeles 1984 conquistou as duas medalhas de ouro em disputa e fez o mesmo quatro anos depois, em Seul. Nessa altura, já sabia que era seropositivo, um dado muito importante para perceber a carga emocional da situação que então viveu. No penúltimo salto da qualificação, o mundo gelou quando o grande campeão bateu com a cabeça na prancha e caiu desamparado na água. "Percebi que não tinha sangrado para dentro da piscina, mas sabia que tinha a obrigação de dizer ao médico que me coseu a ferida que era seropositivo", recordou depois. Os juízes pontuaram o salto com zero, mas 35 minutos depois Louganis regressou para o último ensaio de qualificação e passou à final. No dia seguinte, fez 11 saltos perfeitos e conquistou o ouro. Foi a mais impressionante reviravolta do destino na história dos Jogos. No regresso de Seul, a vida pessoal de Greg complicou-se. E então ele "saiu do armário", com um livro, lançado em 1995, em que anunciou a sua condição de seropositivo. Um ano antes assumira a homossexualidade. Quase 16 anos depois, as suas marcas olímpicas, acima dos 700 pontos, continuam a ser referência. Atropelado nos treinos Carlos Lopes (Portugal), Los Angeles 1984 Ao fim de 20 anos de carreira, milhares e milhares de quilómetros corridos em treinos e provas, em crosse, pista e estrada, Carlos Lopes estava, finalmente, na rampa de lançamento para concretizar a sua grande ambição: ser campeão olímpico. Depois do segundo lugar nos 10.000m nos Jogos de Montreal 1976, batido pela velocidade e - soube-se depois - pelas transfusões de sangue do finlandês Lasse Viren, Lopes virou-se para a mais longa distância do programa, a maratona. A poucos dias da partida para Los Angeles, onde participaria nos Jogos de 1984, Lopes voltou a ser notícia, mas pelos piores motivos: durante um treino nas ruas de Lisboa, fora atropelado. Seria o fim para um homem que renascera, praticamente, dos mortos? Aos 37 anos, o atleta que vencera uma terrível lesão no tendão de Aquiles e regressara ao mais alto nível após tantos anos de apagamento teria ainda forças para recuperar? Contam os registos que Lopes rolou sobre o "capot" do carro que o colheu e entrou pelo pára-brisas, com um cotovelo à frente. O país gelou. Quanto ao beirão de Vildemoinhos, recolheu-se, "lambeu as feridas" e continuou a treinar-se afincadamente. Como todos os verdadeiros heróis, a sorte também jogou a seu favor: nesse ano, a maratona masculina só se correu no último dia e o vencedor entraria no estádio durante a cerimónia de encerramento. E o vencedor foi... Carlos Lopes. Num cenário grandioso, Portugal conquistava a sua primeira medalha de ouro olímpica. Foi português o hino que se ouviu nesse último dia dos Jogos, portuguesa a bandeira que tremulou no mastro mais alto do Coliseu de Los Angeles. A imagem que fica para a história, porém, é a de um Lopes de sorriso aberto, acenando à multidão enquanto dava a última volta ao estádio. Para quem tivesse dúvidas, ficava provado que até o cotovelo fazia falta para ser campeão da maratona. GRANDES FEITOS Sete medalhas Mark Spitz (EUA), Munique 1972 Talvez ele tenha falado cedo demais. Mas os que o acusaram de megalomania também terão preferido ficar em silêncio. Nos Jogos Olímpicos de 1968, na Cidade do México, o nadador Mark Spitz anunciou que a sua ambição era conquistar seis medalhas de ouro. Falhou: levou para casa "apenas" duas medalhas de ouro, uma de prata e outra de bronze. Em Munique 1972 apareceu ainda em melhor forma. Num impressionante furacão de vitórias, o rapaz de cabelo farto e bigode farfalhudo, tão ao gosto dos anos 70, conquistou sete medalhas de outro em outras tantas provas - e todos os triunfos foram conseguidos com recordes mundiais! Tantos anos depois, Spitz continua a ser o nome que toda a gente associa à natação e o único atleta olímpico a levar para casa sete títulos nos mesmos Jogos. Em oito dias, o mito construiu-se. Começou nos 200m mariposa, continuou com a estafeta de 4x100m livres, 200m livres, 100m mariposa, 4x200m livres, 100m livres e 4x100m estilos. Como alguém disse uma vez, "é como lançar os dados num casino de Las Vegas": "Ele lançou-os sete vezes seguidas. Ganhou a primeira, a segunda também não é difícil. A terceira já é impressionante. À quarta, junta-se uma multidão. Na quinta, o casino inteiro está em suspenso. Perante a sexta, a imprensa escrita muda as manchetes e fica à espera da sétima." Visto como o potencial sucessor do norte-americano, o australiano Ian Thorpe é o primeiro a dizer que a proeza de Spitz não será igualada. Mas é, pelo menos, glosada. Ainda hoje, tantos anos depois, muita gente nos EUA avisa quando pretende fazer algo arriscado mas que pode dar bons frutos: "Vou fazer uma cena à Spitz." Boneca perfeita Nadia Comaneci (Roménia), Montreal 1976 Ninguém estava preparado para aquilo. E se o factor humano (leia-se o júri) ainda reagiu, apesar de ter demorado muito mais do que habitual, as máquinas não tiveram hipótese. No marcador do pavilhão onde se disputavam as provas de ginástica dos Jogos de Montreal 1976 apareceu escrito: "N. Comaneci 1,00." O mundo acabava de assistir ao primeiro exercício perfeito de ginástica desportiva olímpica. Nadia Comaneci conseguira a proeza de deixar os intimidatórios juízes sem palavras e voltou a repetir a proeza: depois dessa primeira vez, nas paralelas assimétricas, a pequena romena coleccionou mais seis notas "10" e acabou os Jogos com três medalhas de ouro, uma de prata e outra de bronze. Mais importante do que tudo isso, ela passava a fazer parte do património mundial de heróis desportivos, aquelas figuras cujo nome se confunde com a da modalidade que praticam. Quatro anos depois, em Moscovo 1980, mais duas medalhas de ouro e duas de prata. Por essa altura, as notas "10" já se multiplicavam e as regras de pontuação acabaram mesmo por ser alteradas, passando a recorrer às milésimas. E foi o fim dos exercícios "perfeitos". Comaneci manteve a fama e a notoriedade mundial, mas a Roménia (tal como Salazar fizera uma vez com Eusébio, Ceausescu considerou-a património nacional) não a deixava sair para o estrangeiro. A história jogou a seu favor e, com a queda dos regimes comunistas, a agora crescidinha Nadia pôde ir para os EUA casar-se com um ginasta norte-americano (o mesmo que a beijara, para os fotógrafos, numa prova em Nova Iorque, em 1976, por ser o vencedor masculino - embora ela só se lembrasse, dessa altura, que a equipa dos EUA tinha "muitos rapazes louros"). Considerada uma das mulheres mais importantes do século XX, foi colocada no Olimpo dos desportistas do século passado ao lado de nomes como Muhammad Ali, Pelé, Steffi Graf, Michael Jordan ou Carl Lewis. Mas isso são apenas títulos. Na memória de todos os que a viram actuar, ela vive como a boneca perfeita. Ouro cinco vezes seguidas Steven Redgrave (Grã-Bretanha), Sydney 2000 Pode não ter sido rodeado da tempestade mediática que marcou outros grandes feitos olímpicos, mas o triunfo do remador britânico Steven Redgrave na prova de shell de quatro sem timoneiro nos Jogos de Sydney 2000 é um dos momentos mais marcantes da história do olimpismo. Graças a este triunfo, Redgrave passou a ser considerado um dos melhores atletas olímpicos de todos os tempos. Se não mesmo "o" maior. A medalha de ouro foi a quinta em outros tantos Jogos consecutivos. Um feito quase inacreditável, conseguido por um homem discreto que é um exemplo de excelência atlética e carácter humano. E se conquistar um título olímpico já é escrever o nome na história, entrar no Livro Guiness dos Recordes é um sublinhado que dá bem a importância do feito. Steven Redgrave é o único desportista a conquistar medalhas de ouro em cinco Olimpíadas consecutivas - são 16 anos, sempre ao mais alto nível! Tudo começou em Los Angeles 1984, com um título olímpico em shell de quatro com timoneiro. Seul 88, medalha de ouro em shell de dois sem timoneiro. Bis na mesma prova em Barcelona 92. "Tri" em Atlanta 96. E, finalmente, Sydney 2000. Depois dos Jogos de Atlanta, quando a proeza de quatro medalhas de ouro consecutivas já era inédita, Redgrave despediu-se em grande estilo. "Se alguém me vir entrar num barco daqui para a frente, tem autorização para me abater a tiro!", afirmou na altura. Felizmente, dessa vez ninguém o levou a sério. MISÉRIAS OLÍMPICAS Morte com sebo Francisco Lázaro (Portugal), Estocolmo 1912 Quando Portugal começou a sonhar com os Jogos Olímpicos, a vaga de entusiasmo tornou-se avassaladora, mas não trouxe consigo um "detalhe" fundamental: dinheiro. O Comité Olímpico Português ainda realizou um sarau em Lisboa para garantir receitas, mas a coisa não correu bem (havia greve do pessoal dos eléctricos...) e foi preciso reduzir a representação. Seguiram então para Estocolmo seis atletas, todos de elevada condição social à excepção do mais querido de todos, o maratonista Francisco Lázaro, que o povo apontava como grande favorito à conquista do título na maratona masculina. Nesse mesmo ano, num percurso horroroso, que incluía a subida da Calçada de Carriche, em Lisboa (de tal forma inclinada que serviu muitas vezes de local de decisão das clássicas provas de ciclistas Porto-Lisboa), Lázaro conseguira um tempo na casa das 2h52m. Como o título olímpico em Londres 1908 fora conquistado em 2h55m... Mas os portugueses não sabiam o que era treinar, nem planear. Sobrava-lhes em voluntarismo o que lhes faltava em preparação e, numa prova como a maratona, a fronteira entre o falhanço e a tragédia pode ser muito ténue. Francisco Lázaro, vá lá saber-se porquê, decidiu que a melhor forma de enfrentar a canícula que caía sobre Estocolmo era untar o corpo com sebo. Momentos antes da partida, os outros portugueses ainda tentaram limpá-lo, dar-lhe banho, mas era tarde de mais, a partida era daí a segundos. Partiu então Lázaro, de poros entupidos e cabeça destapada. Aos 30 km de prova, uma insolação prostrou-o e o popular atleta acabou morrer horas depois, no hospital. Começava em tragédia a participação olímpica portuguesa, na mesma prova em que, 72 anos mais tarde, Carlos Lopes conquistou o primeiro ouro lusitano. Setembro Negro Munique 1972 A face dos Jogos Olímpicos mudou para sempre a partir daquele dia 5 de Setembro de 1972. Nessa madrugada, um comando palestiniano de oito elementos iludiu a vigilância policial e invadiu as instalações da aldeia olímpica onde se encontrava a delegação de Israel. Na sequência dos acontecimentos que então se precipitaram, morreram 17 pessoas e o movimento olímpico ficou manchado para sempre pelo espectro da ameaça terrorista. A lista negra começou a ser escrita logo nos primeiros instantes do drama: dois israelitas que tentaram resistir à invasão do comando palestiniano foram imediatamente abatidos a tiro. Depois, os homens do "Setembro Negro" barricaram-se com nove reféns e exigiram a libertação de 200 compatriotas detidos em Israel. Já caía a noite quando a situação evoluiu. Dois helicópteros levaram raptores e reféns no que os primeiros pensavam ser um voo para um aeroporto onde os esperava o avião que lhes permitiria escapar rumo a um país árabe. Mas, na verdade, esperava-os uma armadilha numa base da NATO. Ao fim de um dia de angústia, as más notícias chegavam, esmagadoras: a tentativa de resgate correra mal e terminara com o trágico balanço de mais 15 mortos: os nove reféns, cinco terroristas e um polícia. Os outros três palestinianos foram presos. O movimento olímpico tremeu, mas a frase "Os Jogos não podem parar!" ganhou força e fez lei. Os Jogos não pararam. Mas mudaram para sempre. Doping Ben Johnson Seul 1988 Uma final da corrida de atletismo dos 100m é sempre um momento inesquecível, mas a dos Jogos Olímpicos de Seul 1988 perdurou na memória de todos pelos piores motivos. Quando o canadiano Ben Johnson voou sobre a meta e levantou o braço em sinal de triunfo, perante o olhar estupefacto do norte-americano Carl Lewis, segundo classificado, o mundo assistia a uma mentira que o passar do tempo só tem contribuído para agravar. Na verdade, Johnson estava dopado com um anabolizante e a sua desclassificação tornou-se num dos maiores escândalos da história dos Jogos. Símbolo de todos os batoteiros, dos que não receiam a vergonha de querer ganhar sem olhar a meios, Johnson tornou-se um proscrito e nunca mais foi ninguém. Quanto a Lewis, aclamado como um dos maiores atletas de todos os tempos e visto como o bom da fita, recebeu a medalha de ouro. Soube-se muitos anos mais tarde que também usou substâncias dopantes. O "doping" é o maior problema do desporto moderno. Durante muito tempo, o uso de substâncias para melhorar o rendimento dos atletas foi visto como normal, mas na segunda metade do século XX a sofisticação dos batoteiros (ou dos que para eles trabalhavam nos bastidores) começou a pôr em risco as suas próprias vidas. E a ética desportiva reagiu. Na verdade, é um combate sem tréguas, mas inglório. Diz-se que o rato anda sempre à frente do gato e a esta constatação juntam-se os interesses políticos, as fraudes, as hesitações e a própria consciência de que o espectáculo desportivo regrediria a níveis desinteressantes sem o uso de substâncias que melhoram o rendimento dos atletas. Há medida que o tempo passa, vai sendo necessário reescrever a história. E esse é sempre um exercício doloroso. 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