Suplemento Pública

03-08-2004
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Arménia

Por UM PAÍS EM VIAS DE EXTINÇÃO

Domingo, 01 de Agosto de 2004

%Susan B. Glasser

Primeiro, foi o irmão que partiu para a Rússia. Depois, uma filha. Em seguida, a outra. No Outono passado, o último filho, a nora e os netos foram-se embora. Um a um, na última década, todos deixaram a aldeia, no alto da montanha estéril, abandonando a terra rochosa onde a família vivia há cem anos. Agora é a vez de Atlas Hadjiyan.

Vendeu as duas vacas que tinha e deixou de tratar da horta, indispensável à sobrevivência no Inverno rigoroso. Em Setembro, Atlas planeia vir a ser mais uma emigrante relutante, abandonando a nação independente com que os arménios sonharam durante gerações em troca da incerteza de ser bem recebida numa cidade russa gelada, a cerca de 1600 quilómetros para norte. "Eu não quero partir, mas isto não é sítio para se viver", observa.

Para esta aldeia, cujo nome significa "Fortaleza Negra" e onde não há água canalizada, telefone, trabalho pago e, durante grande parte do Inverno, acesso ao mundo exterior, a saída de Atlas Hadjiyan será mais uma desilusão.

Para a Arménia em geral, a sua partida iminente é o resultado final de uma lenta crise de confiança que abalou o povo deste país montanhoso e agreste durante praticamente toda a sua breve história de independência. Ninguém sabe quantos já partiram, mas até as estimativas mais cautelosas indicam um total de mais de um milhão de arménios, contra uma população residente que não ultrapassa os três milhões de habitantes e talvez mesmo nem dois milhões.

Este êxodo faz da Arménia uma das nações com um processo de extinção mais rápido em todo o mundo. "Eu chamo a isso despovoamento", diz Gevorg Pogosyan, um sociólogo que vive em Yerevan, a capital arménia. "Coloca-se a questão se a Arménia é um país com futuro. Nós somos uma sociedade fraca, enfraquecida tanto política como economicamente por esta migração."

Na altura da independência, em 1991, a simples existência da Arménia parecia um triunfo sobre uma histórica trágica. A diáspora arménia, com uma população de quatro milhões em todo o mundo, exultou com a ideia de uma nação sua menos de um século depois de os turcos terem matado entre 500 mil e 1,5 milhões de arménios. Mas, em vez de o regresso à terra natal ser um atractivo para os arménios que tinham reconstruído as suas vidas no Ocidente, o país pós-soviético escreveu novos capítulos de infelicidade na sua já triste história. Mantêm-se os estragos do terramoto de 1988 que matou milhares de pessoas.

Nos anos 90, com o apoio exterior dos seus compatriotas, a Arménia lutou e venceu uma guerra com o vizinho Azerbaijão sobre o disputado enclave de Nagorno-Karabakh, anexando uma larga faixa do território daquele país. Os arménios do enclave apoiaram a guerra. Mas a Arménia nunca chegou a concluir um tratado de paz, permanecendo sob o bloqueio económico do Azerbaijão e da Turquia.

Num país sem recursos naturais significativos, com uma infra-estrutura soviética arruinada e uma economia que só agora começa a mostrar sinais de retoma, muitos arménios não tiveram grandes hipóteses de escolha senão partir. Cerca de 80 por cento da população foi para a Rússia e para outras regiões da antiga União Soviética; os restantes juntaram-se à diáspora nos Estados Unidos ou na Europa Ocidental.

Segundo analistas russos, mil milhões de dólares dos imigrantes arménios são enviados anualmente para a terra natal para alimentar as suas famílias - cerca do dobro do orçamento total do Governo da Arménia. "Se não fossem esses milhões, teríamos tido tumultos e revoltas no país", comenta Pogosyan.

A vaga de pessoas a partir, que atingiu um pico de cerca de 200 mil por ano em meados dos anos 90, estabilizou recentemente, mas o efeito cumulativo permanece. Há muito mais arménios a viver fora do país do que dentro. A população que aqui ficou tem muito menos homens em idade de trabalhar, menos casamentos e menos nascimentos. Há mais mulheres do que homens, numa proporção de 56 por cento para 44 por cento. Cerca de 1,5 milhões de pessoas, ou seja, quase metade da população oficial, vive de pensões ou de outros subsídios do Estado.

É difícil encontrar uma família que não tenha sido atingida pelo êxodo - desde os funcionários governamentais encarregues de acabar com a migração, eles próprios com familiares que partiram para Moscovo, ao patrão da televisão cuja mulher e dois filhos foram viver para a Califórnia há 11 anos, sem ele.

Lawyer Hrayr Tovmasyan viu o seu círculo de amigos e família diminuir com o passar dos anos. Dos seus três colegas de curso que se licenciaram em 1988, um vive em Paris, outro em Heidelberg e o terceiro em Moscovo. As irmãs da mulher foram todas para a Rússia, os tios estão nos Estados Unidos e na Dinamarca. "Sou o único que ficou cá", diz Lawyer.

O seu melhor amigo, um professor, desistiu recentemente do salário de 70 dólares que ganhava por mês para ir viver para Vancôver. Actualmente, trabalha numa fábrica de móveis, mas continua a contactar com Lawyer Tovmasyan, que ainda recentemente recebeu um "mail" seu: "Ele vai ganhar mais do que a mulher pela primeira vez na vida."

"São as pessoas melhores que se vão embora, a população economicamente activa", declara Pogosyan. "São os que supostamente criariam uma classe média aqui. Em vez disso, onde está essa classe média? Na Europa e na Rússia."

E mesmo assim o êxodo continua. Várias vezes por dia, a agente de viagens Diana Asatryan recebe clientes que lhe fazem perguntas reveladoras, do tipo: "O que acontece se ultrapassarmos o prazo do visto no estrangeiro?" "Posso comprar só um bilhete de ida?"

"Aqueles que querem partir acabam sempre por se denunciar", constata Diana Asatryan. Os preços dos vistos europeus no mercado negro são bem conhecidos nas agências, declara a agente de viagens - entre oito mil a 10 mil dólares por um visto para qualquer um dos 15 países europeus da zona Schengen. Os destinos preferidos são França - "quem tem um filho lá fica automaticamente residente", observa a agente de viagens - e Estados Unidos, "para os jovens".

Ninguém sabe ao certo quantos arménios ainda se encontram no país. Foi realizado um recenseamento oficial, em 2001, que vinha sendo adiado há muito tempo - o primeiro desde o colapso soviético -, e cujos resultados só foram revelados totalmente este ano. Segundo esse recenseamento, a população oficial é de 3,2 milhões de habitantes. Analistas independentes, políticos da oposição e muitos outros arménios consideram este valor pouco credível. "Segundo estes números, nada mudou", diz Asatryan. "Na minha própria família, foram-se embora dez pessoas. Oficialmente, eles ainda cá estão, continuam registados. Mas não vivem cá!"

Vários analistas dizem que, hoje, a população do país muito provavelmente rondará entre os dois milhões e os dois milhões e meio.

Grande parte dos emigrantes não partiram de boa vontade e poderiam ter sido persuadidos a regressar se as condições na Arménia tivessem melhorado, observa Gagik Yeganyan, chefe da agência governamental criada em 2000 para tratar da crise migratória.

"Nós temos um ideal nacional - 'Um país, uma nação, uma cultura, uma religião.' Isto significa que a Arménia é considerada a pátria de todos os arménios que vivem em todo o mundo, embora actualmente só haja 30 por cento a viver em território nacional", conclui Gagik, acrescentando: "Os arménios quando deixam o país pensam que não é para sempre."

PÚBLICO/ "The Washington Post"

Tradução de Francisca Sacadura

Arménia

Por UM PAÍS EM VIAS DE EXTINÇÃO

Domingo, 01 de Agosto de 2004

%Susan B. Glasser

Primeiro, foi o irmão que partiu para a Rússia. Depois, uma filha. Em seguida, a outra. No Outono passado, o último filho, a nora e os netos foram-se embora. Um a um, na última década, todos deixaram a aldeia, no alto da montanha estéril, abandonando a terra rochosa onde a família vivia há cem anos. Agora é a vez de Atlas Hadjiyan.

Vendeu as duas vacas que tinha e deixou de tratar da horta, indispensável à sobrevivência no Inverno rigoroso. Em Setembro, Atlas planeia vir a ser mais uma emigrante relutante, abandonando a nação independente com que os arménios sonharam durante gerações em troca da incerteza de ser bem recebida numa cidade russa gelada, a cerca de 1600 quilómetros para norte. "Eu não quero partir, mas isto não é sítio para se viver", observa.

Para esta aldeia, cujo nome significa "Fortaleza Negra" e onde não há água canalizada, telefone, trabalho pago e, durante grande parte do Inverno, acesso ao mundo exterior, a saída de Atlas Hadjiyan será mais uma desilusão.

Para a Arménia em geral, a sua partida iminente é o resultado final de uma lenta crise de confiança que abalou o povo deste país montanhoso e agreste durante praticamente toda a sua breve história de independência. Ninguém sabe quantos já partiram, mas até as estimativas mais cautelosas indicam um total de mais de um milhão de arménios, contra uma população residente que não ultrapassa os três milhões de habitantes e talvez mesmo nem dois milhões.

Este êxodo faz da Arménia uma das nações com um processo de extinção mais rápido em todo o mundo. "Eu chamo a isso despovoamento", diz Gevorg Pogosyan, um sociólogo que vive em Yerevan, a capital arménia. "Coloca-se a questão se a Arménia é um país com futuro. Nós somos uma sociedade fraca, enfraquecida tanto política como economicamente por esta migração."

Na altura da independência, em 1991, a simples existência da Arménia parecia um triunfo sobre uma histórica trágica. A diáspora arménia, com uma população de quatro milhões em todo o mundo, exultou com a ideia de uma nação sua menos de um século depois de os turcos terem matado entre 500 mil e 1,5 milhões de arménios. Mas, em vez de o regresso à terra natal ser um atractivo para os arménios que tinham reconstruído as suas vidas no Ocidente, o país pós-soviético escreveu novos capítulos de infelicidade na sua já triste história. Mantêm-se os estragos do terramoto de 1988 que matou milhares de pessoas.

Nos anos 90, com o apoio exterior dos seus compatriotas, a Arménia lutou e venceu uma guerra com o vizinho Azerbaijão sobre o disputado enclave de Nagorno-Karabakh, anexando uma larga faixa do território daquele país. Os arménios do enclave apoiaram a guerra. Mas a Arménia nunca chegou a concluir um tratado de paz, permanecendo sob o bloqueio económico do Azerbaijão e da Turquia.

Num país sem recursos naturais significativos, com uma infra-estrutura soviética arruinada e uma economia que só agora começa a mostrar sinais de retoma, muitos arménios não tiveram grandes hipóteses de escolha senão partir. Cerca de 80 por cento da população foi para a Rússia e para outras regiões da antiga União Soviética; os restantes juntaram-se à diáspora nos Estados Unidos ou na Europa Ocidental.

Segundo analistas russos, mil milhões de dólares dos imigrantes arménios são enviados anualmente para a terra natal para alimentar as suas famílias - cerca do dobro do orçamento total do Governo da Arménia. "Se não fossem esses milhões, teríamos tido tumultos e revoltas no país", comenta Pogosyan.

A vaga de pessoas a partir, que atingiu um pico de cerca de 200 mil por ano em meados dos anos 90, estabilizou recentemente, mas o efeito cumulativo permanece. Há muito mais arménios a viver fora do país do que dentro. A população que aqui ficou tem muito menos homens em idade de trabalhar, menos casamentos e menos nascimentos. Há mais mulheres do que homens, numa proporção de 56 por cento para 44 por cento. Cerca de 1,5 milhões de pessoas, ou seja, quase metade da população oficial, vive de pensões ou de outros subsídios do Estado.

É difícil encontrar uma família que não tenha sido atingida pelo êxodo - desde os funcionários governamentais encarregues de acabar com a migração, eles próprios com familiares que partiram para Moscovo, ao patrão da televisão cuja mulher e dois filhos foram viver para a Califórnia há 11 anos, sem ele.

Lawyer Hrayr Tovmasyan viu o seu círculo de amigos e família diminuir com o passar dos anos. Dos seus três colegas de curso que se licenciaram em 1988, um vive em Paris, outro em Heidelberg e o terceiro em Moscovo. As irmãs da mulher foram todas para a Rússia, os tios estão nos Estados Unidos e na Dinamarca. "Sou o único que ficou cá", diz Lawyer.

O seu melhor amigo, um professor, desistiu recentemente do salário de 70 dólares que ganhava por mês para ir viver para Vancôver. Actualmente, trabalha numa fábrica de móveis, mas continua a contactar com Lawyer Tovmasyan, que ainda recentemente recebeu um "mail" seu: "Ele vai ganhar mais do que a mulher pela primeira vez na vida."

"São as pessoas melhores que se vão embora, a população economicamente activa", declara Pogosyan. "São os que supostamente criariam uma classe média aqui. Em vez disso, onde está essa classe média? Na Europa e na Rússia."

E mesmo assim o êxodo continua. Várias vezes por dia, a agente de viagens Diana Asatryan recebe clientes que lhe fazem perguntas reveladoras, do tipo: "O que acontece se ultrapassarmos o prazo do visto no estrangeiro?" "Posso comprar só um bilhete de ida?"

"Aqueles que querem partir acabam sempre por se denunciar", constata Diana Asatryan. Os preços dos vistos europeus no mercado negro são bem conhecidos nas agências, declara a agente de viagens - entre oito mil a 10 mil dólares por um visto para qualquer um dos 15 países europeus da zona Schengen. Os destinos preferidos são França - "quem tem um filho lá fica automaticamente residente", observa a agente de viagens - e Estados Unidos, "para os jovens".

Ninguém sabe ao certo quantos arménios ainda se encontram no país. Foi realizado um recenseamento oficial, em 2001, que vinha sendo adiado há muito tempo - o primeiro desde o colapso soviético -, e cujos resultados só foram revelados totalmente este ano. Segundo esse recenseamento, a população oficial é de 3,2 milhões de habitantes. Analistas independentes, políticos da oposição e muitos outros arménios consideram este valor pouco credível. "Segundo estes números, nada mudou", diz Asatryan. "Na minha própria família, foram-se embora dez pessoas. Oficialmente, eles ainda cá estão, continuam registados. Mas não vivem cá!"

Vários analistas dizem que, hoje, a população do país muito provavelmente rondará entre os dois milhões e os dois milhões e meio.

Grande parte dos emigrantes não partiram de boa vontade e poderiam ter sido persuadidos a regressar se as condições na Arménia tivessem melhorado, observa Gagik Yeganyan, chefe da agência governamental criada em 2000 para tratar da crise migratória.

"Nós temos um ideal nacional - 'Um país, uma nação, uma cultura, uma religião.' Isto significa que a Arménia é considerada a pátria de todos os arménios que vivem em todo o mundo, embora actualmente só haja 30 por cento a viver em território nacional", conclui Gagik, acrescentando: "Os arménios quando deixam o país pensam que não é para sempre."

PÚBLICO/ "The Washington Post"

Tradução de Francisca Sacadura

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