Será necessário estimular a evolução do ensino superior?

19-12-2003
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Sistema à procura de identidade e com excesso de endogamia

Será Necessário Estimular a Evolução do Ensino Superior?

Segunda-feira, 01 de Dezembro de 2003

O ensino superior em Portugal volta a discutir a sua identidade. Elevadas taxas de abandono escolar, falta de autonomia e falta de mobilidade de professores são alguns dos problemas facilmente detectados

Manuel V. Heitor*

Ao realizar-se no final da semana passada mais um importante colóquio organizado pelo Serviço de Educação da Fundação Calouste Gulbenkian, desta vez sobre direitos e responsabilidades na sociedade educativa, somos levados a questionar que sistema de educação temos, para onde queremos ir, e, sobretudo, quem controla, ou poderá estimular, a evolução do sistema. Concentremo-nos no caso do ensino superior, tão assediado mais uma vez pela defesa de direitos e responsabilidades por estudantes, mas também pelo Estado.

Apesar da evolução, e modernização, do ensino superior em Portugal requerer um quadro conceptual devidamente justificado, é importante identificar os desafios realmente críticos com que se confronta o ensino superior, naturalmente tão ofuscado por uma discussão centrada nas propinas. De facto, muitos têm sido os autores que num contexto internacional têm discutido o papel das políticas públicas para a formação de cientistas e graduados, nomeadamente num contexto de crescimento económico a longo prazo. É neste âmbito que estas reflexões se baseiam numa nova abordagem conceptual ao desenvolvimento económico, em que a "acumulação de conhecimento" surge como motor fundamental do processo de desenvolvimento.

Um sistema à procura de identidade

No caso específico de Portugal, há que considerar que o sistema de ensino superior passou de cerca de 30.000 estudantes nos anos 60, para cerca de 400.000 em 2001, o que demonstra um crescimento acelerado da população estudantil tendo como referência a evolução em outros países europeus durante o mesmo período (ver gráfico), apesar do decréscimo do número de estudantes a partir de 1998 ter sido previsto com base em projecções consecutivas. Este processo é devido sobretudo ao crescimento do ensino superior não universitário, que cresceu a uma taxa consideravelmente superior à do ensino universitário, representado actualmente cerca de 42 por cento dos alunos. É no entanto importante notar que desde a análise prospectiva publicada em 1994 que sabemos que a habilitação que mais contribui para o reforço da qualificação escolar dos quadros médios em Portugal é a licenciatura. Neste contexto, o bacharelato tem sido em parte um "corredor de passagem" para a licenciatura, estando a sua falta de especificidade corroborada pela regressão global do peso dos bacharéis no conjunto dos quadros médios.

É ainda conhecido que parte da expansão do sistema deveu-se à introdução de um novo elemento no quadro do ensino superior: a expansão da oferta privada, onde tem sido generalizado o modelo de "teaching university" e incentivada a dicotomia com a generalização do modelo de "research university" nas universidades públicas.

Esta expansão quantitativa e as profundas transformações qualitativas deixaram um sistema de ensino com múltiplas vocações e direcções, à procura de uma identidade própria e particularmente vulnerável a influências externas. É o caso das discussões em torno da harmonização de graus na Comissão Europeia, que levaram a que indicações para serem adaptadas aos contextos nacionais fossem, muitas vezes, consideradas as directrizes estratégicas que caberia ao sistema conceber. Em resumo, o sistema cresceu e expandiu-se (também qualitativamente), mas sem encontrar a sua identidade.

Uma sociedade "dual"

Apesar do crescimento acelerado e o correspondente processo de relativa massificação do ensino superior, verifica-se ainda um atraso estrutural em termos de população activa com cerca de metade da percentagem de graduados relativamente à média dos países da OCDE (respectivamente 11 por cento e 24 por cento, relativamente a 1999). Adicionalmente, as instituições de ensino superior em Portugal graduam anualmente cerca de 0,2 por cento da população assalariada, enquanto esse valor para a média europeia em 1992 era de 0,4 por cento.

No essencial, a população portuguesa apresenta um défice de qualificações, detendo taxas de produtividade muito baixas face às de outros países da OCDE. Algo que é preocupante se se tiver em conta que o desempenho em ambientes competitivos em conhecimento depende da qualidade dos recursos humanos e das actividades e incentivos orientados para a criação e difusão de conhecimento.

A população portuguesa também apresenta uma outra característica: a dualidade. Esta dualidade congrega uma população jovem, com qualificações ao nível das sociedades europeias, e uma população de uma faixa etária mais velha, com uma forte participação na força de trabalho e que se caracteriza por qualificações formais baixas. No entanto, esta população pouco qualificada tende a perdurar devido às elevadas taxas de abandono escolar no secundário e no ensino superior. Portugal apresenta a maior taxa de abandono escolar (45 por cento) de toda a União Europeia, quando a média da mesma se situa nos 19 por cento.

Um sistema à procura de autonomia

Apesar das transformações quantitativas e qualitativas verificadas desde os anos 70 para reformar o ensino superior em Portugal, a análise mostra-nos um considerável défice da capacidade institucional para garantir a sua autonomia e a reforma das próprias instituições, uma vez que todas as mudanças institucionais foram impostas pelo Estado, o que deve ser entendido como um reflexo da dependência do mesmo, e em parte resultante dos modelos de financiamento usados. De facto, as instituições de ensino superior portuguesas têm-se desenvolvido com base num modelo de financiamento que incide nos recursos, limitando a lógica de determinação das receitas ao suporte desses recursos. As actividades desenvolvidas, e sobretudo o resultado dessas actividades, são em grande parte ignoradas, valorizando uma cultura corporativa, que ignora incentivos que ligam o financiamento aos resultados e que minimiza objectivos que são social e politicamente preconizados para o sistema de ensino superior.

Um sistema com excesso de endogamia

Um dos factores limitativos à reforma das instituições de ensino superior tem sido reconhecido estar associado à falta de mobilidade por parte do corpo docente. Esta limitação torna-se ainda mais crítica nas instituições de ensino superior mais antigas, que detém um conjunto de tradições, valores e normas académicas que torna a transformação da sua estrutura mais complexa e difícil. De facto, nas instituições de ensino superior portuguesas, o processo de contratação dos seus próprios graduados e doutores (i.e., endogamia, ou "inbreeding" na literatura anglo-saxónica) atinge taxas demasiado elevadas. A endogamia impede a mudança estrutural, e muitas vezes a mudança de abordagem dos problemas de investigação científica e de ensino, tendo sido reconhecida pela Comissão Europeia como uma barreira para a difusão de novas formas de organização e conhecimento. O problema da endogamia não é exclusivo nacional, uma vez que a Espanha também apresenta níveis de endogamia muito elevados, na ordem dos 95 por cento. Por outro lado, países como o Reino Unido apresentam uma taxa de endogamia de apenas 17 por cento, tendo-se desenvolvido ao longo de décadas com base numa alta mobilidade do corpo docente.

Um sistema que não se auto-reforma

Se há sumário possível deste breve diagnóstico, é que a reforma do sistema de ensino superior em Portugal requer a mobilização de actores críticos da sociedade, não sendo possível esperar a sua auto-reforma. Contudo, este facto não é recente. Já nos anos 60, Miller Guerra lançou o alerta para essa situação ao afirmar que "as instituições universitárias não se auto-reformam". Passados 40 anos, a frase de Miller Guerra continua particularmente válida e relevante para o ensino superior em Portugal, nomeadamente como resultado de um relacionamento continuadamente desadequado com o Estado e a sociedade civil. É hoje claro que as reformas realizadas a partir dos anos 70 não permitiram preparar o sistema para os desafios da economia do conhecimento e, sobretudo, de uma sociedade de aprendizagem. Em particular o resultado em relação à autonomia, foi um constante fechamento das instituições universitárias face à sociedade civil, e de uma situação de conformismo face a uma dependência crescente do Estado.

*Prof. Catedrático do IST-UTL

Colaboração INTELI - Inteligência em Inovação

Sistema à procura de identidade e com excesso de endogamia

Será Necessário Estimular a Evolução do Ensino Superior?

Segunda-feira, 01 de Dezembro de 2003

O ensino superior em Portugal volta a discutir a sua identidade. Elevadas taxas de abandono escolar, falta de autonomia e falta de mobilidade de professores são alguns dos problemas facilmente detectados

Manuel V. Heitor*

Ao realizar-se no final da semana passada mais um importante colóquio organizado pelo Serviço de Educação da Fundação Calouste Gulbenkian, desta vez sobre direitos e responsabilidades na sociedade educativa, somos levados a questionar que sistema de educação temos, para onde queremos ir, e, sobretudo, quem controla, ou poderá estimular, a evolução do sistema. Concentremo-nos no caso do ensino superior, tão assediado mais uma vez pela defesa de direitos e responsabilidades por estudantes, mas também pelo Estado.

Apesar da evolução, e modernização, do ensino superior em Portugal requerer um quadro conceptual devidamente justificado, é importante identificar os desafios realmente críticos com que se confronta o ensino superior, naturalmente tão ofuscado por uma discussão centrada nas propinas. De facto, muitos têm sido os autores que num contexto internacional têm discutido o papel das políticas públicas para a formação de cientistas e graduados, nomeadamente num contexto de crescimento económico a longo prazo. É neste âmbito que estas reflexões se baseiam numa nova abordagem conceptual ao desenvolvimento económico, em que a "acumulação de conhecimento" surge como motor fundamental do processo de desenvolvimento.

Um sistema à procura de identidade

No caso específico de Portugal, há que considerar que o sistema de ensino superior passou de cerca de 30.000 estudantes nos anos 60, para cerca de 400.000 em 2001, o que demonstra um crescimento acelerado da população estudantil tendo como referência a evolução em outros países europeus durante o mesmo período (ver gráfico), apesar do decréscimo do número de estudantes a partir de 1998 ter sido previsto com base em projecções consecutivas. Este processo é devido sobretudo ao crescimento do ensino superior não universitário, que cresceu a uma taxa consideravelmente superior à do ensino universitário, representado actualmente cerca de 42 por cento dos alunos. É no entanto importante notar que desde a análise prospectiva publicada em 1994 que sabemos que a habilitação que mais contribui para o reforço da qualificação escolar dos quadros médios em Portugal é a licenciatura. Neste contexto, o bacharelato tem sido em parte um "corredor de passagem" para a licenciatura, estando a sua falta de especificidade corroborada pela regressão global do peso dos bacharéis no conjunto dos quadros médios.

É ainda conhecido que parte da expansão do sistema deveu-se à introdução de um novo elemento no quadro do ensino superior: a expansão da oferta privada, onde tem sido generalizado o modelo de "teaching university" e incentivada a dicotomia com a generalização do modelo de "research university" nas universidades públicas.

Esta expansão quantitativa e as profundas transformações qualitativas deixaram um sistema de ensino com múltiplas vocações e direcções, à procura de uma identidade própria e particularmente vulnerável a influências externas. É o caso das discussões em torno da harmonização de graus na Comissão Europeia, que levaram a que indicações para serem adaptadas aos contextos nacionais fossem, muitas vezes, consideradas as directrizes estratégicas que caberia ao sistema conceber. Em resumo, o sistema cresceu e expandiu-se (também qualitativamente), mas sem encontrar a sua identidade.

Uma sociedade "dual"

Apesar do crescimento acelerado e o correspondente processo de relativa massificação do ensino superior, verifica-se ainda um atraso estrutural em termos de população activa com cerca de metade da percentagem de graduados relativamente à média dos países da OCDE (respectivamente 11 por cento e 24 por cento, relativamente a 1999). Adicionalmente, as instituições de ensino superior em Portugal graduam anualmente cerca de 0,2 por cento da população assalariada, enquanto esse valor para a média europeia em 1992 era de 0,4 por cento.

No essencial, a população portuguesa apresenta um défice de qualificações, detendo taxas de produtividade muito baixas face às de outros países da OCDE. Algo que é preocupante se se tiver em conta que o desempenho em ambientes competitivos em conhecimento depende da qualidade dos recursos humanos e das actividades e incentivos orientados para a criação e difusão de conhecimento.

A população portuguesa também apresenta uma outra característica: a dualidade. Esta dualidade congrega uma população jovem, com qualificações ao nível das sociedades europeias, e uma população de uma faixa etária mais velha, com uma forte participação na força de trabalho e que se caracteriza por qualificações formais baixas. No entanto, esta população pouco qualificada tende a perdurar devido às elevadas taxas de abandono escolar no secundário e no ensino superior. Portugal apresenta a maior taxa de abandono escolar (45 por cento) de toda a União Europeia, quando a média da mesma se situa nos 19 por cento.

Um sistema à procura de autonomia

Apesar das transformações quantitativas e qualitativas verificadas desde os anos 70 para reformar o ensino superior em Portugal, a análise mostra-nos um considerável défice da capacidade institucional para garantir a sua autonomia e a reforma das próprias instituições, uma vez que todas as mudanças institucionais foram impostas pelo Estado, o que deve ser entendido como um reflexo da dependência do mesmo, e em parte resultante dos modelos de financiamento usados. De facto, as instituições de ensino superior portuguesas têm-se desenvolvido com base num modelo de financiamento que incide nos recursos, limitando a lógica de determinação das receitas ao suporte desses recursos. As actividades desenvolvidas, e sobretudo o resultado dessas actividades, são em grande parte ignoradas, valorizando uma cultura corporativa, que ignora incentivos que ligam o financiamento aos resultados e que minimiza objectivos que são social e politicamente preconizados para o sistema de ensino superior.

Um sistema com excesso de endogamia

Um dos factores limitativos à reforma das instituições de ensino superior tem sido reconhecido estar associado à falta de mobilidade por parte do corpo docente. Esta limitação torna-se ainda mais crítica nas instituições de ensino superior mais antigas, que detém um conjunto de tradições, valores e normas académicas que torna a transformação da sua estrutura mais complexa e difícil. De facto, nas instituições de ensino superior portuguesas, o processo de contratação dos seus próprios graduados e doutores (i.e., endogamia, ou "inbreeding" na literatura anglo-saxónica) atinge taxas demasiado elevadas. A endogamia impede a mudança estrutural, e muitas vezes a mudança de abordagem dos problemas de investigação científica e de ensino, tendo sido reconhecida pela Comissão Europeia como uma barreira para a difusão de novas formas de organização e conhecimento. O problema da endogamia não é exclusivo nacional, uma vez que a Espanha também apresenta níveis de endogamia muito elevados, na ordem dos 95 por cento. Por outro lado, países como o Reino Unido apresentam uma taxa de endogamia de apenas 17 por cento, tendo-se desenvolvido ao longo de décadas com base numa alta mobilidade do corpo docente.

Um sistema que não se auto-reforma

Se há sumário possível deste breve diagnóstico, é que a reforma do sistema de ensino superior em Portugal requer a mobilização de actores críticos da sociedade, não sendo possível esperar a sua auto-reforma. Contudo, este facto não é recente. Já nos anos 60, Miller Guerra lançou o alerta para essa situação ao afirmar que "as instituições universitárias não se auto-reformam". Passados 40 anos, a frase de Miller Guerra continua particularmente válida e relevante para o ensino superior em Portugal, nomeadamente como resultado de um relacionamento continuadamente desadequado com o Estado e a sociedade civil. É hoje claro que as reformas realizadas a partir dos anos 70 não permitiram preparar o sistema para os desafios da economia do conhecimento e, sobretudo, de uma sociedade de aprendizagem. Em particular o resultado em relação à autonomia, foi um constante fechamento das instituições universitárias face à sociedade civil, e de uma situação de conformismo face a uma dependência crescente do Estado.

*Prof. Catedrático do IST-UTL

Colaboração INTELI - Inteligência em Inovação

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