As razões por detrás de um voto

19-12-2003
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A Economia da Política

As Razões por Detrás de Um Voto

Por PAULO TRIGO PEREIRA

Segunda-feira, 01 de Dezembro de 2003

O voto de Manuela Ferreira Leite no Conselho Ecofin, favorável à "suspensão" do Pacto de Estabilidade e Crescimento (eufemismo para a morte do PEC), foi decisivo. Não apenas para a maioria qualificada necessária, mas para reforçar o argumento da Alemanha e da França, que poderá ser formulado assim: "Então não vêem que até eles [Portugal] estão com dificuldades em sair da recessão por submissão às regras do PEC e agora aceitam mudar de posição e votar connosco."

O PEC está mal desenhado. Ter como objectivo de médio prazo um equilíbrio ou "superavit" das contas públicas levaria, no longo prazo, ao estoque da dívida convergir para zero, algo que não faz sentido. Contudo, teve um grande mérito: criar um quadro de incentivos estáveis para a consolidação orçamental, sobretudo em países, como a França, Itália, Portugal e Bélgica, com graves desequilíbrios orçamentais e que, com as perspectivas de envelhecimento da população e de aumento dos gastos com a saúde, terão que reformar drasticamente o seu enquadramento orçamental. Há pois que criar um novo PEC, não violar o que existe. Quem, de agora em diante, irá levar a sério um Pacto servido "à la carte", ao sabor dos interesses dos grandes?

Relembremos a história recente. A Alemanha, ciosa do seu marco, só querendo abandoná-lo a favor de um euro forte, convence os restantes países da necessidade de adoptarem regras orçamentais estritas. Em 1997, as regras do PEC são estabelecidas para tentar garantir a sustentabilidade das finanças públicas a médio prazo. Tenta-se evitar défices e dívidas excessivas através de procedimentos que vão dos simples avisos até sanções que podem incluir avultadas multas. Em 2001, o défice orçamental atinge os 4,1 por cento, fruto de rectificação das contas nacionais e de má execução orçamental do governo PS. Em 2002, o PSD ganha as eleições numa campanha em que promete baixar impostos e sanear as finanças públicas. O novo governo PSD/PP decide aumentar o IVA.

Em Novembro de 2002, Portugal é objecto de uma decisão relativa à existência de défices excessivos. São as regras do jogo e o governo português compromete-se a tomar medidas para que o défice não exceda os três por cento e para que se reduza até 2006, em particular o défice estrutural. Contudo, torna-se agora claro que não há consolidação orçamental. Sem receitas extraordinárias, cujos efeitos ainda são incertos, o défice em 2002, 2003 e 2004, seria (será) claramente superior aos três por cento. Até Novembro de 2003 parecia que, para o governo português, o Pacto era para cumprir, e que não só não era nenhuma humilhação seguir as suas regras, como até motivo de orgulho. Ajudado pelo Pacto, o governo justificou reformas, algumas necessárias, para umas finanças públicas mais sustentadas, e pediu sacrifícios aos portugueses, nomeadamente aos funcionários públicos.

Num ápice, tudo mudou. Ao votar com os grandes, Alemanha e França, que estavam prestes a ser sancionados pelo mesmíssimo Pacto, o que o governo aceitou é que as regras são só para os pequenos, pois os grandes gerem as excepções. Que cumprir regras para os primeiros é um dever, para os segundos uma humilhação. É esta a Europa que este governo quer construir? É esta a ideia de soberania nacional e de igualdade dos Estados? Como quer o governo tentar convencer os portugueses da necessidade de austeridade e de reformas se um dos países com que se aliou, a França, ostensivamente ignorou o Pacto, adoptando medidas claramente eleitoralistas de descidas de impostos sem reformas estruturais, quando a sua situação orçamental se deteriorava?

Uma larga coligação negativa saudou em Portugal a morte do Pacto por motivos diversos. Antes do mais, os anti-europeístas de esquerda e de direita. A derrota da Comissão face ao Conselho de ministros enfraqueceu aquela e, por arrasto, a própria União Europeia. Depois, certa esquerda que ainda não percebeu a distinção entre justiça distributiva e benesses a grupos de interesse sentados à mesa do Orçamento. Finalmente, os "pragmáticos" de centro-direita que acham que o que é bom para a Alemanha e a França (e a Itália, com a dívida em mais de 100 por cento do PIB) é bom para a Europa e o que é bom para a Europa é bom para Portugal. Uma lógica infalível, não fora basear-se numa premissa falsa.

Que razões podem pois estar por detrás do voto da ministra? O Governo parece ter tomado finalmente consciência que as reformas que está a levar a cabo não produzirão efeitos significativos antes de 2006. Sabe que as últimas previsões apontam para um crescimento menor na zona euro para 2004 do que anteriormente previsto. Sabe também que o seu futuro depende sobretudo de como estiver o bolso e o emprego dos portugueses em 2006. Entrámos, prematuramente, na segunda fase do ciclo eleitoral!

*Professor do ISEG

ppereira@iseg.utl.pt

A Economia da Política

As Razões por Detrás de Um Voto

Por PAULO TRIGO PEREIRA

Segunda-feira, 01 de Dezembro de 2003

O voto de Manuela Ferreira Leite no Conselho Ecofin, favorável à "suspensão" do Pacto de Estabilidade e Crescimento (eufemismo para a morte do PEC), foi decisivo. Não apenas para a maioria qualificada necessária, mas para reforçar o argumento da Alemanha e da França, que poderá ser formulado assim: "Então não vêem que até eles [Portugal] estão com dificuldades em sair da recessão por submissão às regras do PEC e agora aceitam mudar de posição e votar connosco."

O PEC está mal desenhado. Ter como objectivo de médio prazo um equilíbrio ou "superavit" das contas públicas levaria, no longo prazo, ao estoque da dívida convergir para zero, algo que não faz sentido. Contudo, teve um grande mérito: criar um quadro de incentivos estáveis para a consolidação orçamental, sobretudo em países, como a França, Itália, Portugal e Bélgica, com graves desequilíbrios orçamentais e que, com as perspectivas de envelhecimento da população e de aumento dos gastos com a saúde, terão que reformar drasticamente o seu enquadramento orçamental. Há pois que criar um novo PEC, não violar o que existe. Quem, de agora em diante, irá levar a sério um Pacto servido "à la carte", ao sabor dos interesses dos grandes?

Relembremos a história recente. A Alemanha, ciosa do seu marco, só querendo abandoná-lo a favor de um euro forte, convence os restantes países da necessidade de adoptarem regras orçamentais estritas. Em 1997, as regras do PEC são estabelecidas para tentar garantir a sustentabilidade das finanças públicas a médio prazo. Tenta-se evitar défices e dívidas excessivas através de procedimentos que vão dos simples avisos até sanções que podem incluir avultadas multas. Em 2001, o défice orçamental atinge os 4,1 por cento, fruto de rectificação das contas nacionais e de má execução orçamental do governo PS. Em 2002, o PSD ganha as eleições numa campanha em que promete baixar impostos e sanear as finanças públicas. O novo governo PSD/PP decide aumentar o IVA.

Em Novembro de 2002, Portugal é objecto de uma decisão relativa à existência de défices excessivos. São as regras do jogo e o governo português compromete-se a tomar medidas para que o défice não exceda os três por cento e para que se reduza até 2006, em particular o défice estrutural. Contudo, torna-se agora claro que não há consolidação orçamental. Sem receitas extraordinárias, cujos efeitos ainda são incertos, o défice em 2002, 2003 e 2004, seria (será) claramente superior aos três por cento. Até Novembro de 2003 parecia que, para o governo português, o Pacto era para cumprir, e que não só não era nenhuma humilhação seguir as suas regras, como até motivo de orgulho. Ajudado pelo Pacto, o governo justificou reformas, algumas necessárias, para umas finanças públicas mais sustentadas, e pediu sacrifícios aos portugueses, nomeadamente aos funcionários públicos.

Num ápice, tudo mudou. Ao votar com os grandes, Alemanha e França, que estavam prestes a ser sancionados pelo mesmíssimo Pacto, o que o governo aceitou é que as regras são só para os pequenos, pois os grandes gerem as excepções. Que cumprir regras para os primeiros é um dever, para os segundos uma humilhação. É esta a Europa que este governo quer construir? É esta a ideia de soberania nacional e de igualdade dos Estados? Como quer o governo tentar convencer os portugueses da necessidade de austeridade e de reformas se um dos países com que se aliou, a França, ostensivamente ignorou o Pacto, adoptando medidas claramente eleitoralistas de descidas de impostos sem reformas estruturais, quando a sua situação orçamental se deteriorava?

Uma larga coligação negativa saudou em Portugal a morte do Pacto por motivos diversos. Antes do mais, os anti-europeístas de esquerda e de direita. A derrota da Comissão face ao Conselho de ministros enfraqueceu aquela e, por arrasto, a própria União Europeia. Depois, certa esquerda que ainda não percebeu a distinção entre justiça distributiva e benesses a grupos de interesse sentados à mesa do Orçamento. Finalmente, os "pragmáticos" de centro-direita que acham que o que é bom para a Alemanha e a França (e a Itália, com a dívida em mais de 100 por cento do PIB) é bom para a Europa e o que é bom para a Europa é bom para Portugal. Uma lógica infalível, não fora basear-se numa premissa falsa.

Que razões podem pois estar por detrás do voto da ministra? O Governo parece ter tomado finalmente consciência que as reformas que está a levar a cabo não produzirão efeitos significativos antes de 2006. Sabe que as últimas previsões apontam para um crescimento menor na zona euro para 2004 do que anteriormente previsto. Sabe também que o seu futuro depende sobretudo de como estiver o bolso e o emprego dos portugueses em 2006. Entrámos, prematuramente, na segunda fase do ciclo eleitoral!

*Professor do ISEG

ppereira@iseg.utl.pt

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